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Vivendo em meio ao suicídio assistido: desenhando um landscape e seus movimentos transnacionais



Desde 1871, com a implementação do Código Criminal do Império Alemão [Reichsstrafgesetzbuch], a assistência ao suicídio na Alemanha se baseou no princípio de que o auxílio a um ato legal não pode ser considerado ilegal: se suicídio é legal, logo assistência ao suicídio também o deve ser. No entanto, em 2015, após um intenso debate político na Alemanha que contou com a apresentação de quatro propostas de lei que tinham por objetivo regular o tema, uma nova legislação sobre suicídio assistido foi aprovada pelo Parlamento. Membros do Parlamento receberam garantia de voto livre da posição oficial dos seus partidos, pois o assunto foi considerado uma questão de consciência. Ao longo da manhã de sexta-feira, dia 6 de Novembro, 29 membros do Parlamento subiram ao pódio anteriormente à votação para expressar suas opiniões sobre assistência ao suicídio, com frequência compartilhando experiências pessoais. Ao se endereçar ao Parlamento, por exemplo, Dr. Carola Reimann disse:

Senhoras e senhores, eu não sei qual é a sensação de viver com uma doença dolorida e incurável. Eu não sei qual decisão eu tomaria nesse caso. Tudo o que eu sei é: caso eu esteja nessa situação, eu, pessoalmente, gostaria de encontrar o meu próprio caminho. Como membro do Parlamento, eu digo: eu quero que os outros tenham essa liberdade.

Rudolf Henke, também membro do Bundestag, compartilhou uma experiência privada:

Eu vou dizer algo: eu parei, quando eu tinha acho 22 ou 23 anos, em frente à janela e perguntei a mim mesmo, durante uma crise de relacionamento: o que eu faço agora? – Se tivesse alguém lá para pressionar apenas um pouco, alguém que apoiasse um pouco, talvez eu não estivesse aqui.

O compartilhamento de considerações pessoais e experiências privadas preencheram o debate em conjunto com questões referentes ao alcance e dever do Parlamento; o papel do Estado e dos indivíduos; a quebra de tradições; os limites da legalização e os perigos da criminalização; o papel da medicina e o direito à auto-determinação. Embora esse debate em particular tenha ocorrido no Parlamento alemão, este artigo tem por objetivo salientar dois pontos principais: (1) políticas nacionais têm efeitos e alcance para além das fronteiras políticas dos Estados que a originaram, e (2) suicídio assistido não se resume ao procedimento. Ao discutir a prática de eutanásia voluntária na Holanda, Norwood (2015; 2009; 2007) enfatizou um importante argumento: o tropo “eutanásia voluntária” vai além do procedimento em si. A autora diferencia o ato de terminação da vida e o que chama de “euthanasia-talk”, que abrange “toda uma cadeia de atividades – baseada sobretudo em dialogo” (2007:150, tradução minha). Isto é, a permeabilidade social da eutanásia, especificamente nas discussões necessárias entre pacientes e médicos, ou entre a própria família. Euthanasia-talk significa a criação de um espaço discursivo onde decisões acerca do final da vida se tornam um tópico aceito (ou contestado) e todas as opções a esse respeito são trazidas para a discussão.

À luz do debate no Bundestag, o argumento de Norwood sugere a relevância de pensar a respeito de suicídio assistido de um modo mais contextualizado, compreendendo-o não somente enquanto o ato em si, mas como parte de uma dinâmica mais ampla – no presente caso compreendendo uma complexa malha de normas e regulações, conhecimento médico, preferências e decisões individuais, deliberações morais, além de questões políticas e econômicas. Definir suicídio assistido simplesmente como o procedimento através do qual uma pessoa termina a sua vida por meio da ajuda de um terceiro não é suficiente. Até mesmo essa breve descrição pode levantar questões sobre assistência ao suicídio que vão além do ato em si, como quem pode ou não ter acesso a essa possibilidade?; onde ele ocorre?; como os meios necessários – drogas – são obtidos? Questões para as quais qualquer resposta deverá considerar uma ampla margem de aspectos legais, regulações profissionais, circunstâncias sócio-econômicas, assim como as possibilidades oferecidas por organizações especializadas.

Formas específicas de morte assistida, enquanto um termo que engloba diferentes dinâmicas e procedimentos como suicídio assistido e eutanásia voluntária, são possibilidades legais – ou, ao menos, não ilegais – não apenas na Holanda, mas também em outros contextos, como Bélgica, Luxemburgo, Suíça, e os estados do Oregon, Washington, Vermont e, mais recentemente, Novo México e Califórnia, nos Estados Unidos. Entretanto, conforme argumentam Wolf e Hörbst, questões médicas já não podem mais ser restritas ao interior de “marcos de referência localizados e isolados como estados-nações” (2014: 183, tradução minha), mas sim compreendidos enquanto diferentes formas de associação e cooperação que por vezes ocorrem a nível transnacional. Portanto, eu expandiria igualmente este argumento a questões políticas: embora tais marcos de referência possam proporcionar alguma ajuda, eles também lançam uma sombra analítica sobre os efeitos e influências de certas políticas nacionais. Em termos gerais, suicídio assistido permanece como uma opção legal na Alemanha mesmo após a aprovação da chamada Lei Brand/Griese, cujos alvos são, primordialmente, organizações que oferecem assistência ao suicídio e aconselhamento em questões referentes ao final da vida. A sua intenção de impedir um modelo de assistência “comercial” provavelmente surtirá efeito na Suíça, país com uma legislação menos restritiva e onde estrangeiros podem se tornar membros de organizações e, por fim, requisitar assistência ao suicídio se assim desejarem.

O presente artigo se baseia em uma etnografia sobre mobilidades transnacionais relacionadas ao suicídio assistido na Europa, e apresenta um evento específico e dois casos judiciais para ilustrar brevemente modos particulares de habitar o landscape do suicídio assistido e o papel de mediação desempenhado, por vezes de forma relutante, por médicos e profissionais da saúde. Sendo assim, para melhor apreender os atos de mobilidade e as políticas associadas ao suicídio assistido eu lanço mão do conceito de “medicoscapes”, conforme descrito por Wolf e Hörbst (2014), com o intuito de apresentar, em sua complexidade, a malha [meshwork] na qual suicídio assistido está imerso. Conforme sugerido pelos autores, esse conceito é uma ferramenta para visualizar “a complexidade do entrelaçamento de relações locais, nacionais e globais” em campos relacionados à saúde (2014: 183, tradução minha), reunindo elementos dispersos e heterogêneos como práticas, políticas públicas, indivíduos e instituições como parte do mesmo landscape analítico. Entretanto, enquanto o conceito de medicoscape dá ênfase especial a fenômenos relacionados à saúde, suicídio assistido permanece tanto um assunto médico quanto político e moral. Os debates políticos que são com frequência disparados por meio da institucionalização da assistência ao suicídio traz consigo o questionamento acerca da possibilidade de o procedimento ser considerado parte do escopo da medicina — a despeito dessa discussão, em todo contexto onde a prática tenha sido institucionalizada médicos estão de alguma forma integrados à dinâmica, seja ao providenciar relatórios médicos e a realização de exames, ou ao prescrever as drogas necessárias. Portanto, para amenizar a ênfase direcionada aos campos relacionados à saúde e, ao mesmo tempo, preservar a definição conceitual dos autores, o termo landscape, mais amplo, será aqui utilizado.

A escolha por apresentar um evento e dois casos jurídicos foi feita com o intuito de ilustrar duas partes fundamentais desse landscape onde movimento, ou mobilidade, tem uma atuação significativa. Primeiramente, a situação legal assimétrica entre contextos nacionais e a variedade de normas médicas que regulam suicídio assistido em cada um desses contextos acabam por criar uma situação de pluralismo normativo no interior do qual são estabelecidas associações e cooperações entre indivíduos e organizações com o objetivo de viabilizar a assistência ao suicídio enquanto opção prática. O evento a ser descrito aqui é um entre tais casos de cooperação. Essa ideia segue o argumento de Mol (2002), no qual ela alude à importância de pensar sobre a colaboração entre práticas, materialidades, discursos, espaços e tecnologias de governo para criar eventos específicos. O evento, como resultado dessas colaborações, altera o foco do suicídio assistido enquanto procedimento para a coordenação entre praticalidades e agentes no interior do seu landscape. Em segundo lugar, enquanto mobilidade transnacional é um modo de habitar tal landscape com o objetivo de viabilizar assistência profissional ao suicídio, um outro modo é através de contestações judiciais. Conforme escreveu Jasanoff, “interpretações judiciais do direito à morte tornaram-se enredadas em uma complexa tapeçaria de ajustes sociais dos recentemente públicos, e tecnologicamente assistidos, rituais do morrer” (1995: 184, tradução minha). A judicialização da vida é um modo de demandar um direito sobre ela, incluindo aquele de terminá-la em seus próprios termos. Essa alternativa não exclui a possibilidade de mobilidades transnacionais, mas sim, ao contrário, leva à sua proliferação, pois ambas as alternativas regularmente incitam cooperações similares e contam com o envolvimento dos mesmos agentes.

Uma viagem à Suíça

Era cerca de 10h quando ela entrou no apartamento acompanhada por duas senhoras. No seu interior, a médica, a secretária da organização e eu estávamos esperando por ela. Apesar das minhas expectativas acerca desse momento, Elise entrou na sala com um sorriso simpático em seu rosto, acenando a todos nós com a cabeça. Andando devagar, como se cuidasse os seus passos naquele local desconhecido, ela se movia em direção à mesa localizada em um canto da sala — a mesma onde estávamos todos aguardando a sua chegada. Assim que Elise se juntou a nós, café foi rapidamente oferecido pela secretária. O apartamento sem janelas, que era então utilizado pela organização fundada anos antes por Dr. Preisig, médica suíça, e localizado na proximidade das fronteiras com a Alemanha e a França, era dividido entre um espaço de trabalho, uma cozinha, um banheiro e uma sala decorada com um sofá vinho, uma confortável cadeira e uma cama. Um aparelho de som e uma coleção variada de CDs também estavam disponíveis. Os membros da organização podem escolher onde querem realizar o procedimento, o qual se dá por meio da autoadministração intravenosa de um barbitúrico. Os assistentes somente podem auxiliar na preparação, pois os próprios membros devem abrir a válvula e liberar o fluxo do medicamento.

Dinâmica comum na Alemanha e na Suíça, a pessoa deve ser membro de alguma organização para poder solicitar e, finalmente, poder realizar o procedimento nas suas dependências ou com o auxílio de seus profissionais. Naquele momento, Elise era membro da organização por um ano e havia recebido a luz-verde cerca de dois meses antes de sua viagem. A luz-verde significa a autorização para o agendamento de assistência ao suicídio dada por organizações aos seus membros, e sua concessão requer o cumprimento de uma série de requisitos — em sua maioria médicos, como apresentação de exames e um diagnóstico terminal ou de dor insuportável. Elise também teve que apresentar uma carta na qual ela manifestou por escrito o seu desejo de morrer com o auxílio da organização, fundamentando tal desejo na batalha diária que travava com a sua condição de saúde. Elise não tinha uma doença terminal. A sua condição era crônica e ela sentia dores físicas constantes, as quais ela não conseguia aliviar com tratamento. Conforme Elise nos explicou, ela estava lá porque não se sentia mais capaz de aguentar a sua condição, e a ausência de um tratamento efetivo a levou a considerar todas as opções relativas aos cuidados de fim da vida, incluindo assistência ao suicídio.

Com todos sentados à mesa, Elise contou que não tinha mais família, pois seus pais já haviam falecido e ela não tinha nem irmãos nem filhos. As duas senhoras que haviam entrado com ela no apartamento, suas duas acompanhantes, eram membros de uma organização francesa que oferece aconselhamento a pessoas que consideram a possibilidade de realizar um suicídio assistido, bem como acompanhamento caso elas decidam ir à Suíça — pois assistência ao suicídio permanece ilegal na França. Uma vez com a luz-verde em mãos, ela agendou uma data para morrer na Suíça. Entretanto, nas semanas que antecederam a sua chegada, Elise enfrentou uma série de questões burocráticas e logísticas e, ao mesmo tempo, passou por situações emocionais delicadas.

Após chegar ao aeroporto na França, ela percebeu que seu passaporte havia expirado. Pelo fato de tanto França quanto Suíça serem países membros da área Schengen, Elise disse que a maior parte das companhias aéreas não costumam pedir um documento válido para viagem. Mas esse não foi o caso. Sem um passaporte em mãos, ela se dirigiu a um escritório no próprio aeroporto e conseguiu obter um passaporte emergencial. Com esse problema resolvido e já dentro do avião, os passageiros foram informados de que ele não iria decolar por razões técnicas. Foi a primeira vez em sua vida que tal situação havia ocorrido. Ainda insistindo em ir à Suíça e sem a possibilidade de chegar a tempo para seu agendamento original, Elise alugou um carro e na companhia das duas senhoras dirigiu 12 horas da França até a Suíça, apesar da sua dor constante. Após chegar em Basel e com um novo agendamento para o dia seguinte, ela recebeu um telefonema de uma amiga que necessitava da sua companhia — sem ela estar ciente de que Elise estava na Suíça para realizar o seu suicídio assistido. A amiga havia sofrido um aborto espontâneo.

À medida que Elise traduzia eventos dispersos e formava uma narrativa coesa, o seu sorriso tornava-se introspectivo. Ela compartilhou que havia sonhado com seus pais na semana anterior e eles a haviam dito que “não a queriam aqui”, pois ela ainda tinha muito a realizar. Ela também mencionou que a expressão comumente usada por sua mãe para descrever quando algo não estava certo era “esse avião não decolou”. Os seus olhos ficaram aguados. Percebendo que Elise poderia estar em dúvida sobre a sua decisão de realizar o procedimento, Dr. Preisig disse que ela poderia cancelar o procedimento, remarcando para algum outro momento, caso venha a ser necessário. A luz-verde não representa uma obrigação, mas sim uma opção. As suas duas acompanhantes concordaram com a médica e reforçaram a sua sugestão ao dizer que a decisão era dele e somente dela, e caso ela achasse que o momento não fosse o ideal ela não deveria continuar com o procedimento. Após uma pausa curta, Elise continuou a discutir a sua situação, mas os seus olhos não estavam mais aguados. Ao invés de realizar o procedimento, ela decidiu caminhar sozinha de volta ao hotel e, em seguida, embarcar em um trem para visitar a sua amiga em uma cidade próxima.

Foi a primeira vez que um membro da organização decidiu não ir adiante com o procedimento após já estar na sala para realizá-lo. A decisão de Elise me atingiu com alívio. A sua viagem à Suíça foi também a minha viagem, embora compartilhando intenções e expectativas diferentes. Estava claro que Elise desejava interromper o seu sofrimento por meio do procedimento, mas encontrou, ao invés, um espaço discursivo no qual ela pode falar abertamente sobre a sua situação de vida — adiando, e não cancelando, o que ainda permanecia enquanto uma opção viável a ela. Poder testemunhar isso me deixou ansioso, mas também aliviado. Ansioso por não saber o que eu iria ver e o que esperar disso. Sem saber como eu reagiria e o que eu sentiria. Quando Elise nos relatou a sua viagem e tudo o que havia acontecido durante o trajeto até Basel, seguido da sua decisão de voltar ao hotel e ir visitar a sua amiga, eu fiquei imediatamente aliviado. E eu não era o único. Todos ali presentes aparentavam sentir um misto de alívio e felicidade, reassegurando que suicídio assistido não é apenas sinônimo de um procedimento específico.


Habitando as normas e a judicialização da biopolítica


Enquanto um evento, o suicídio assistido de Elise envolveu a viabilidade do procedimento no horizonte e a construção de um espaço discursivo socialmente aceito onde a sua situação pode ser compartilhada e discutida. Elise nasceu na Bélgica, um país onde eutanásia voluntária é uma prática médica legal. Um procedimento, no entanto, para o qual ela dificilmente seria elegível, pois estava morando no exterior havia muitos anos — sob o princípio de “consideração cuidadosa”, ela teria que se submeter a uma série de consultas com médicos locais e discutir todos os tratamentos possíveis, um critério que poderia implicar ou uma mudança ao seu país natal, ou frequentes visitas. Ela morava na França, onde morte assistida permanece ilegal. Então após considerar as suas opções, Elise, uma cidadã belga morando na França, decidiu tornar-se membro de uma organização Suíça e viajar a Basel para viabilizar a sua escolha por um suicídio assistido.

A coordenação entre a ilegalidade da assistência ao suicídio na França; a dificuldade que ela enfrentaria para efetuar uma eutanásia voluntária na Bélgica; a branda legislação suíça; o acesso de médicos aos medicamentos necessários e a oferta de um espaço seguro para o procedimento; a viagem de Elise com as suas duas acompanhantes; e o seu aceite no quadro de membros da organização, compôs aquele evento específico. Um evento que, assim como outros vários, transcendeu a fronteira legal e política de um Estado. A regularidade com a qual eventos similares ocorrem torna difícil considerá-los enquanto casos isolados, como ocorrências descontextualizadas. Ao invés de eventos circunstanciais, a similaridade da dinâmica sugere que eles são coordenados no interior de um contexto mais amplo, um landscape, composto não somente pelos indivíduos diretamente envolvidos, mas também por um conjunto de normas, movimentos transnacionais e organizações. Um landscape é uma arena na qual diferentes eventos podem ser percebidos como coordenados no interior de uma escala mais ampla e menos territorializada. Na Suíça, a maioria dos estrangeiros que buscam assistência ao suicídio em organizações são advindos da Alemanha, seguido pelo Reino Unido.

Enquanto eutanásia voluntária é considerada um crime na Suíça, assistência ao suicídio não o é. A situação legal na Suíça deriva do Artigo 115 do Código Criminal Federal Suíço (StGB), o qual diz: “Qualquer pessoa que, por motivos egoístas, incita ou assiste alguém a cometer suicídio, deve ser sentenciada a pena de até cinco anos de prisão ou uma multa” (tradução minha). Portanto, se a assistência ocorre sem razões egoístas — as quais geralmente são associadas à ausência de ganhos econômicos —, a ação não será considerada um crime. A lei não especifica quem pode oferecer assistência nem quem pode solicitá-la, abrindo um vácuo por fim ocupado por organizações, médicos e assistentes profissionais. A atuação de alguns médicos nessa dinâmica contrasta com o código de ética médica suíço, que afirma:

“Nessa situação limite [de suicídio assistido] um conflito de interesses muito difícil pode surgir para os médicos. Por um lado, suicídio assistido não é parte das tarefas de um médico, pois contradiz os objetivos da medicina. Por outro lado, a consideração do desejo de um paciente é fundamental para a relação entre médico e paciente.” (2013: 9, tradução minha)


Conforme enquadrado pela Academia Suíça de Ciências Médicas, o médico estaria em uma posição conflitante, tendo que conciliar a importância da sua relação com os pacientes com o risco de contradizer os objetivos da sua própria profissão. A disputa sobre o papel da profissão médica pode levar a contestações judiciais. Em 2010, a Sra. Alda Gross, cidadã suíça nascida em 1931, protocolou uma ação contra a Confederação Suíça com o intuito de garantir o seu acesso a uma dose letal de sódio pentobarbital — substância com frequência utilizada nos procedimentos de suicídio assistido — sem a necessidade de uma receita médica. Alegando que era seu direito decidir como e quando acabar com a sua vida, Gross salientou que esse direito havia sido violado por meio da imposição de uma receita médica (2013: 11, tradução minha). Antes, em 2007, outro cidadão suíço, Sr. Haas, também alegou que o seu direito de decidir quando e como acabar com a sua vida havia sido infringido. Ambos os casos sugerem que esse direito, vinculado ao Artigo 8 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, havia sido desrespeitado pela impossibilidade de acesso aos medicamentos desejados.

Tal impossibilidade deriva da necessidade de cumprir critérios médicos específicos para receber uma receita, o que um interlocutor desta pesquisa, uma médica da Escócia que trabalhava em proximidade com organizações suíças, definiu em termos de “um portão médico”: os requerimentos médicos que alguém deve cumprir de modo a poder ter acesso a um suicídio assistido. Critérios que ambos os demandantes não cumpriam, seja por possuir um diagnóstico de desordem psiquiátrica (Haas) ou por ser considerada saudável (Gross). Entretanto, conforme argumentado por Gross, ao fazer isso a Suprema Corte da Suíça havia pressuposto “que o suicídio da demandante deveria ser justificado desde um ponto de vista médico” (2013: 12, tradução minha), e que isso era “incompatível com a presunção de que qualquer pessoa capaz de tomar decisões tem o direito de decidir o momento e a maneira da sua própria morte” (2013: 12, tradução minha). Ambos os casos foram posteriormente considerados pela Corte Europeia de Direitos Humanos (ECHR), uma corte supranacional estabelecida pela Convenção Europeia de Direitos Humanos. Tal qual ilustrado pelos dois casos, a disputa acerca do papel da profissão médica abrange não apenas o procedimento em si, ou seja, se médicos podem ou não auxiliar em suicídios — conforme colocado pela Academia Suíça de Ciências Médicas —, mas, além disso, temas como a imposição de uma receita médica para ter acesso a certos medicamentos, e um diagnóstico capaz de fundamentar e validar a opção por um suicídio assistido — ou, em termos gerais, ter que justificar o suicídio através de uma perspectiva médica.

Os casos de Gross e Haas estão entre ao menos cinco casos considerados pela Corte Europeia de Direitos Humanos desde o início dos anos 2000 em relação a morte assistida — embora a Corte tenha recebido mais casos, eles foram declarados inadmissíveis. A Corte tem por objetivo assegurar que os direitos previstos na Convenção Europeia de Direitos Humanos não sejam “teóricos e ilusórios”, mas “práticos e efetivos” (julgamento Artico v. Italy, 13 Maio 1980, § 33, Série A no. 37, tradução minha). Portanto, ela é um local de disputa onde diferentes modos de habitar as normas contestam ou demandam o direito de morrer e, ao fazer isso, acabam por expor um conjunto de obrigações e deveres que permeiam a relação entre Estado e cidadão. Relações que são, nos casos anteriormente mencionados, mediadas pela profissão médica. O “portão médico” age como um mediador entre a demanda para morrer feita por alguém sob circunstâncias específicas e a alegada obrigação do Estado para com seus cidadãos, formulada pela submissão do Governo suíço no caso contra Haas nos seguintes termos:

“O Estado é obrigado a não somente abster-se da tomada intencional e ilegal da vida, mas também a tomar os passos apropriadas para salvaguardar as vidas daqueles na sua jurisdição de atos de terceiros ou, onde apropriado, deles próprios. (…) Onde as autoridades estão cientes do risco de suicídio por um indivíduo, é incumbente a elas fazer tudo que pode ser razoavelmente esperado delas para prevenir o suicídio.” (2011: 14, tradução minha)


Conforme escreveu Biehl sobre a judicialização do acesso à saúde, o judiciário acaba por se tornar um “espaço no qual o desprezo biopolítico do Estado (i.é., a sua disposição ‘para ‘deixar’ morrer’) — em conluio com o mercado — é exposto para crítica pública” (2013: 424, tradução minha). Em relação ao suicídio assistido, nós nos deparamos com um processo oposto, onde o judiciário se torna um espaço de disputa no qual o Estado nega uma obrigação positiva de “deixar morrer” e o faz através da imposição de uma série de tecnologias médicas. Essas tecnologias são sintetizadas no cotidiano de organizações por meio da luz-verde, a qual combina critérios como diagnóstico e avaliação psiquiátrica, e age como um um dos mediadores entre os indivíduos e os medicamentos necessários. Ao ocupar um papel de mediação, a luz-verde acaba por se tornar um “portão médico” que tanto garante o acesso à possibilidade de realizar o procedimento quanto o restringe. Entretanto, conforme formulado por Mahmood e seguindo os passos de Foucault, os mesmos processos que restringem o acesso a uma dinâmica específica ao assegurar a subordinação de alguém às normas são os mesmos que criam as condições para um sujeito emergir como um agente autoconsciente (2006: 45), levando à emergência de contestações judiciais.

Elise habitou esse landscape de indivíduos, normas entrelaçadas e organizações ao tomar parte em um movimento transnacional que facilitaria o seu acesso ao suicídio assistido, isto é, ela agiu a partir de uma situação limitante e emergiu enquanto uma agente por meio de um conjunto de cooperações. Por sua vez, Dr. Preisig posicionou-se no interior de uma disputa acerca do papel da profissão médica, habitando o landscape de modo a reajustar a situação contraditória descrita pela Academia Suíça de Ciências Médicas com as possibilidades viabilizadas por uma legislação branda (que, segundo Andorno, teve a criação da atual dinâmica de suicídio assistido na Suíça como uma consequência não intencional [2013]). Nesse sentido, é seguro considerar que o suicídio assistido profissional — ou, em termos mais gerais, morte assistida — não é somente o procedimento em si, ou, conforme o argumento de Norwood, a criação de um espaço discursivo, mas também é o estabelecimento de um landscape no qual indivíduos podem habitar de diferentes maneiras e acabam por possibilitar o diálogo sobre suas situações de vida, emergindo enquanto agentes e, em última análise, contestando as suas demandas em espaços de disputa, como Cortes judiciais. O evento de Elise, assim como os casos de Haas e Gross, ilustra como a justaposição de elementos heterogêneos, como um conjunto emaranhado de normas, habitam esse landscape, e como os papeis desempenhados em seu interior, especialmente o do médico, é alvo de disputa.


Conclusões


Discutir suicídio assistido é considerar um landscape de elementos heterogêneos, tais quais um conjunto de normas e legislações, indivíduos, organizações e diferentes práticas e materialidades. Um landscape que perpassa diferentes contextos nacionais por meio de cooperação, coordenação e mobilidade. Quando o Bundestag debateu e por fim aprovou uma lei para regular o tema, o foco foi direcionado ao suicídio assistido enquanto procedimento. A Lei Brand/Griese, que teve por objetivo prevenir “o desenvolvimento do suicídio assistido enquanto um serviço de cuidados de saúde” (Gesetzentwurf 18/5373: 3, tradução minha), propôs a preservação do princípio da legalidade segundo o qual suicídio assistido sempre foi internamente interpretado, mas, ao mesmo tempo, criminalizou a sua operação comercial. Ao fazer isso, sem considerar o landscape em sua totalidade, ela irá simplesmente induzir o seu rearranjo, disparando novas cooperações e incentivando mais atos de mobilidade. Não somente muitos alemães já vão à Suíça para realizar um suicídio assistido, como há também muitos membros suíços de organizações que residem na Alemanha. As incertezas que seguem uma mudança legal podem causar um impacto em ambos os cenários, com organizações avaliando se continuarão a providenciar assistência ao suicídio a alemães e, consequentemente, arriscar serem alvos de processos legais. Sob a nova lei, médicos que prescrevem regularmente drogas para utilização em suicídio assistido podem ser processados nos termos de “operação comercial”, pois a lei diz que “é suficiente, se alguém quer fazer da repetição de atos similares o objeto de sua ocupação profissional” (Gesetzentwurf 18/5373: 20, tradução minha). No entanto, como um landscape médico-judicial, algumas organizações — tanto alemãs quanto suíças —, como Sterbehilfe Deutschland e LifeCircle, declararam a intenção de contestar a nova lei na Corte Constitucional Federal da Alemanha, em Karlsruhe. De qualquer modo, se as normas no interior do landscape mudarem, diferentes associações seguirão: tanto para judicializar ainda mais o suicídio assistido quanto para encontrar novos caminhos de viabilizá-lo através de atos de mobilidade.


Referências


Andorno, Roberto. 2013. Nonphysician-Assisted Suicide in Switzerland. In: Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics 22, 1-8.


Biehl, João. 2013. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. In: American Ethnologist 40, (3), 419-436.


European Court of Human Rights, Gross v. Switzerland, 14 May 2013. Application N° 67810/10


European Court of Human Rights, Haas v. Switzerland, 20 Jan 2011. Application N° 31322/07.


European Court of Human Rights, Artico v. Italy, 13 May 1980. Application N° 6694/74.


Hörbst, Viola; Wolf, Angelika. 2014. ARVs and ARTs: Medicoscapes and the Unequal Place-making for Biomedical Treatments in sub-Saharan Africa. In: Medical Anthropology Quarterly 28 (2). 182-202.


Jasanoff, Sheila. 1995. Science at the Bar: Law, Science, and Technology in America. Cambridge: Harvard University Press.


Mahmood, Saba. 2006. Feminist Theory, Agency, and the Liberatory Subject: Some Reflections on the Islamic Revival in Egypt. In: Temenos 42, (1), 31-71.


Mol, Annemarie. 2002. The Body Multiple: Ontology in medical practice. Duke University Press.


Norwood, Frances. 2015. End of Life Choices. In: International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences, 2nd Edition, Vol. 7, 594-605.


Norwood, Frances. 2009. The Maintenance of Life: Preventing social death through euthanasia talk and end-of-life care – lessons from the Netherlands. Carolina Academic Press.


Norwood, Frances. 2007. Nothing More to Do: Euthanasia, General Practice, and End-of-Life Discourse in the Netherlands. In: Medical Anthropology 26 (2), 139-174.


Swiss Academy of Medical Sciences. 2013. Guidelines. Care of patients in the end of life; available at http://www.samw.ch/en/Ethics/Guidelines/Currently-valid-guidelines.html (last accessed 01 Nov 2015).



Nota: Texto originalmente publicado por “Medizinethnologie Körper, Gesundheit und Heilung in einer globalisierten Welt”, com o título “Living Within Assisted Suicide: Drawing a Landscape and its Transnational Movements”: http://www.medizinethnologie.net/living-within-assisted-suicide/


Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), mestre em Antropologia Social também pelo PPGAS/UFRGS, e membro associado (DAAD Fellowship) do grupo Medical Anthropology na Freie Universität Berlin, Alemanha. Trabalha nas áreas de antropologia econômica, política e da medicina, e pesquisa atualmente suicídio assistido na Europa.



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