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Quando a economia é um ato de criatividade: alguns pontos para pensar a Economia Criativa.



A preocupação tradicional da economia é como os indivíduos utilizam recursos finitos para saciar necessidades infinitas, enquanto buscam maximizar sua utilidade calculando racionalmente custos e benefícios de suas decisões sujeitos a constrições legais, sociais e monetárias que limitam sua ação dentro de uma economia de mercado. Um problema econômico começa a ser definido por perguntas como: o que produzir? Quando produzir? Em que quantidade produzir? Para quem produzir?

Isso dá corpo à instituição da Economia Moderna enquanto um ramo “não-ético” do estudo do comportamento humano. Economistas passaram a se ocupar com temáticas de “engenharia”, como bem assinala Amartya Sen (1999): diagnósticos qualitativos, ferramentas de intervenção e instrumentos econométricos ou, nos termos dos próprios economistas, "tecnologias de intervenção econômica”.

Essas questões são distantes, a princípio, do universo da criação. Agentes mobilizados pela lógica da criatividade não parecem se questionar vividamente sobre “o que produzir”, “quando produzir”, “em que quantidade e para quem se destina essa produção”. Dificilmente enxergam a si mesmos como indivíduos divididos entre escolhas racionais, pensadas de modo a maximizar sua utilidade. A lógica da criatividade também não pode ser pensada em um registro similar a da economia de mercado, mas como parte de um sistema opera através de instâncias de consagração que legitimam as trocas.

Durante a etnografia ainda em curso que realizo junto a agentes envolvidos em empresas Startup, que são arranjos empresariais flexíveis e experimentais que são fundamentados em uma retórica fortemente atrelada ao fazer acontecer e na noção de empreendedorismo (ABÉLÈS, 2002) iniciada no ano de 2014 - técnicos, empresários e investidores que atuam dentro e fora das fronteiras do Brasil - tive extenso contato com policy-makers envolvidos na formulação de políticas públicas ligadas a setores de tecnologia e informação no país.

São economistas, consultores e profissionais ligados ao Ministério da Cultura e do Desenvolvimento engajados em contínuo diálogo por meio de instituições de ensino públicas articuladas nos Observatórios de Economia Criativa, criados a partir de 2012 pela então Secretaria de Economia Criativa e extinta em 2015 pela gestão de Juca Ferreira. Todos estavam especialmente interessados em uma categoria emergente da economia, a chamada Economia Criativa.


A incorporação de ativos intangíveis no cálculo da performance econômica


Desde a década de 1970, a economia compreendia a dimensão simbólica da ação econômica por meio da noção de Economia da Cultura. Um estudo paradigmático que marca o estabelecimento desse corpus teórico foi realizado por William Baumol e William Bowen, pesquisadores contratados pela Fundação Ford para analisar a performance econômica do setor de teatros e apresentações ao vivo na Broadway em 1969. As contribuições dos autores marcaram profundamente o estabelecimento da Economia da Cultura, que se volta para a análise de instituições culturais - tais como teatro, cinema, galerias de arte - e desenvolvimento de indicativos de produtividade desses setores - o PIB da cultura.

Economia Criativa, por sua vez, é um conceito que adquiriu força a partir da década de 1990. Esse modelo acabou compondo a abordagem oficial ao qual o Ministério da Economia e Finanças do Reino Unido aderiu em 2005, no Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Reino Unido. Um movimento paralelo foi a incorporação do conceito ao painel de ações da Conferência das Nações Unidas para o Comércio o Desenvolvimento que, em 2008, lança o Programa de Economia Criativa[if !supportFootnotes][i][endif] com o lançamento do primeiro relatório de Economia Criativa.

O argumento central daqueles dos economistas era que o investimento em Criatividade era uma saída viável a médio e longo prazo para questões estratégicas relacionadas ao desenvolvimento, que não era mais compreendido em um registro simplesmente numérico de performance de setores da economia, mas sim um paradigma que englobava necessariamente os desafios contemporâneos relacionados ao meio ambiente, ao social e à cultura. Tornar o mercado mais “humano”, diziam eles, passava necessariamente em refletir sobre como absorver a dimensão substantiva e adjetiva da experiência humana para dentro da economia e, assim, estimular ferramentas capazes de tornar o mundo um lugar mais diverso, inclusivo e próspero.

Setores artísticos não deveriam mais ocupar um lugar periférico na economia de mercado. A Economia Criativa propõe um modelo concêntrico de indústrias criativas, cujo núcleo é composto por setores ligados às artes visuais, da literatura, da música e das artes performáticas, que passaram a ser chamados de “núcleo criativo”. Em um segundo plano afastado do núcleo, estão “outras indústrias culturais” como cinema, museus e livrarias e, no terceiro plano, “industrias culturais mais amplas” como patrimônio, editoras, empresas de audio-visual, televisão e rádio, vídeo e games e, por fim, o que chamam de “indústrias relacionadas”: propaganda, arquitetura, design e moda.

Em tempos em que nos deparamos com questões ligadas à financeirização, flexibilização, tecnologização e crescente especulação dos mercados financeiros, a narrativa da Economia Criativa parece um tanto atraente ao primeiro olhar. Entretanto, não pude evitar de questionar: o que exatamente os economistas querem dizer com criatividade?


A criatividade em seu sentido econômico e político


Criatividade é uma categoria de análise bastante problemática. Polissêmica, é uma noção fundante do pensamento Ocidental que remete à relação entre criação e técnica como pólos opositores. É associada a mitos de criação, enredos nos quais um mundo anteriormente caótico e amorfo se torna inteligível, ordenado e pleno de sentido. Criatividade também é um elemento fundamental da construção da figura do gênio romântico e de uma ética de autorrealização e descoberta individual, inventividade e singularidade. (TRILLING, 1972; CAMPBELL, 1987)

Como categoria empírica, a idéia de criação é intimamente ligada com a noção de valor enquanto dimensão incomensurável da experiência humana e a potencialidade de intervenção no mundo em que nos cerca. Como bem coloca Tom Boellstorff (2010), essa é “uma visão Ocidental profundamente arraigada da vida humana como consistindo da necessidade de criação, fundada em uma cultura de constante aperfeiçoamento e predicada em um tipo de pessoa divisível que atrela seu self criativo em objetos como meio de transformar trabalho em valor”. (BOELSTORFF, 2010: Kindle Location 4443)

Quando falamos de Economia Criativa, a idéia de criatividade passa a ser investida não somente de sentido moral, mas sobretudo econômico e político e a operar como modo específico de produção, governança e subjetivação. Essa nova economia não seria mais impulsionada por economistas e indústrias, mas por sujeitos em busca de autorrealização criativa que, ao fazer uso de um potencial abundante e comum ao humano, expandem os limites da ação econômica.

É na noção de criatividade que a experiência aparentemente tão distante de agentes que "performam" a economia como empreendedores e economistas confluem: enquanto os primeiros pensam modelos de negócio que buscam absorver a experiência cotidiana sensível a partir de uma lógica proveniente do marketing e da gestão, economistas, por sua vez, pensam a formulação de métricas e modelos avaliativos capazes de trazer para dentro do mercado tudo aquilo que, para eles, é considerado uma externalidade, toda ação humana que não pode ser convertida imediatamente em dinheiro.

Muito da literatura que toca questões relativas à produção, trabalho e valor na contemporaneidade advém de uma leitura sobre grandes teorias estruturais do capitalismo, em consonância com o que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) chamam de novo espírito do capitalismo. Minha perspectiva é, mais do que construir uma meta-narrativa do neoliberalismo, elucidar os modos concretos através dos quais esse projeto político econômico é edificado na vida concreta de agentes de economia.

Esse breve texto faz parte desse projeto. Busco colocar em questão alguns aspectos centrais para começarmos a pensar a Economia Criativa que, mesmo sendo questionamentos de ordem teórica, são postos a partir das lentes de meu trabalho de campo, muitas delas tópicos de longas conversas com meus interlocutores, temas de diversas piadas e ironias e, até mesmo, uma maneira através da qual os agentes encontravam meios de refletir sobre sua própria experiência.


A política econômica da criatividade


O primeiro passo é pensar sobre o próprio conceito de Economia Criativa. Esse termo aparece pela primeira vez no discurso “Creative Nation”, proferido em 1994 pelo então primeiro ministro australiano. A fala defendia a importância de aproveitar as oportunidades geradas pela globalização e pelas mídias digitais como forma de informar a criatividade das pessoas e estimular sua contribuição individual para o desenvolvimento do país.

Na ocasião, com o objetivo de fazer frente à crescente competitividade econômica global, o governo britânico do então Primeiro-Ministro Tony Blair criou uma força tarefa multissetorial encarregada de analisar tendências de mercado e vantagens competitivas nacionais. O fruto desse trabalho, realizado em parceria público-privada, foi a identificação de 13 setores com maior potencial para a economia britânica, um conjunto de segmentos dinâmicos cujo comércio global cresceria a taxas mais elevadas do que o restante da economia.

Todos eles estariam estavam à mídia, pesquisa e inovação, produção cultural, tecnologia e arte. Esse desempenho foi tomado como um efeito de produtos e serviços baseados em “criatividade e conhecimento", que, segundo economistas que compuseram o painel, possuiriam elasticidade-renda elevada[if !supportFootnotes][ii][endif] de tal modo a não serem afetados tão negativamente durante abalos financeiros ao longo do final do século XX e a primeira década do século XXI.[if !supportFootnotes][iii][endif]

O principal eixo de conexão entre tais campos é a possibilidade de geração de valor econômico por meio de direitos de propriedade intelectual. Esse é o aspecto central que marca a passagem de uma Economia da Cultura para outra Criativa: a possibilidade de geração de produtos e serviços escaláveis, posse, valoração e mensuração de ativos intangíveis.

Isso significa considerar setores ligados à propaganda e branding[if !supportFootnotes][iv][endif]; ao cinema; empresas digitais, de games, software e tecnologia; empresas Telecom; design e arquitetura; música; editoras; pesquisa e desenvolvimento; moda; filme e vídeo e artes[if !supportFootnotes][v][endif]. No centro dos setores produtivos agora considerados criativos estão aqueles ligados a campos reconhecidos como culturais: artes visuais, literatura, musica e artes performáticas.

A isso deu-se o nome de “indústrias criativas”, o que permitiu ao governo britânico propor medidas de intervenção não somente econômicas e industriais, mas educacionais, culturais e relativas à malha urbana: se a criatividade é a matéria prima de desenvolvimento econômico, o mecanismo de fomento por excelência está na formação e alocação de pessoas enquanto recursos produtivos indispensáveis.

Esse modelo acabou compondo a abordagem oficial ao qual o Ministério da Economia e Finanças do Reino Unido aderiu em 2005, no Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Reino Unido. Um movimento paralelo foi a incorporação do conceito ao painel de ações da Conferência das Nações Unidas para o Comércio o Desenvolvimento que, em 2008, lança o Programa de Economia Criativa[if !supportFootnotes][vi][endif] com o lançamento do primeiro relatório de Economia Criativa.

O Brasil foi, desde 2004, foco de interesse da UNCTAD. Sob a gestão Gilberto Gil do Ministério da Cultura, conferências internacionais foram realizadas em junho de 2004 e maio de 2005 nas cidades de São Paulo e Salvador, respectivamente, para promover a agenda da Economia Criativa e angariar apoio governamental para seu lançamento oficial. No ano de 2012 foi instituída a Secretaria de Economia Criativa no Ministério da Cultura, órgão responsável por pensar o modelo brasileiro de desenvolvimento estratégico da criatividade, cuja grande iniciativa foi a criação de Observatórios de Economia Criativa em Universidades Federais entre os anos de 2013 e 2014.


A relação entre economia e desenvolvimento


A trajetória epistêmica que culmina na noção de Economia Criativa não é necessariamente recente. Essa perspectiva é fomentada desde a década de 1980, com a introdução de teorias provenientes da sociologia no campo econômico em uma tentativa de incorporar elementos relacionais e intangíveis na análise de performances econômicas.

A primeira tentativa de impacto foi a criação do popular conceito de "capital social" a partir do trabalho do sociólogo Robert Putnam em seu livro Making Democracy Work, publicado em 1988, no qual defende o conceito como a “aspectos da organização social, como confiança, normas e redes, que podem melhorar a eficiência da sociedade por facilitar a ação co-ordenada”. Uma crítica dirigida a Putnam diz respeito à sua estreiteza conceitual. Isso não impediu sua adoção pelo Banco Mundial junto a suas agências de assistência ao desenvolvimento por ver, nesse corpo conceitual, um mecanismo para encorajar e reconhecer a importância da participação comunitária na economia.

O pano de fundo dessas mudanças seria a intencionalidade em atuar dentro do campo de políticas de desenvolvimento, tornando aspectos da vida social passíveis de serem tomados como elementos da formulação de estatísticas, instrumentos econômicos, bem como mecanismos de obtenção de valor econômico.


A subjetividade como campo de intervenção econômica


O antropólogo Douglas Holmes, que realizou uma extensa etnografia no Banco Central Britânico, propõe uma idéia interessante que uso como inspiração para pensar essa questão: o conceito de Economia das Palavras. Esse é um termo que busca sensibilizar os leitores para um processo técnico importante dentro contexto econômico contemporâneo: a atenção dada para o modo como idéias econômicas são comunicadas ao grande público. Relatórios técnicos, palestras, eventos, documentos e declarações políticas não são simples processos de divulgação, mas sim de persuasão. Economistas enxergam palavras como ferramentas importantes na implementação de regimes econômicos e monetários, escolhendo termos para compor relatórios, matérias jornalísticas e apresentações que provocam grande repercussão para estimular os indivíduos a investirem, pouparem, se lançarem em novos empreendimentos, buscarem formação em uma determinada especialidade técnica “promissora”.

Ele nos diz que “tratar a audiência como protagonistas é fundamental para entender as notáveis questões comunicativas [da economia contemporânea] (…) Modelos analíticos - a maquinaria do conhecimento como Karin Knorr Cetina coloca - que orquestra práticas de pesquisa nessas instituições devem ser vistas também como maquinários de associações, capazes de articular políticas em relação tanto às circunstâncias distintivas e compartilhadas de indivíduos e empresas que estão continuamente modelando e transacionando relações econômicas.” (HOLMES, 2014: Kindle Location 241)

Pensar a Economia Criativa, portanto, é também refletir sobre os modos através dos quais o projeto econômico se materializa através da dimensão da subjetividade e do sensível.

Economistas criam o Sujeito Criativo na expectativa de criar uma Economia Criativa fazendo uso de concepções muito arraigadas no horizonte imaginativo Ocidental e da experiência de agentes artísticos e culturais, no entanto traduzindo questões da experiência concreta desses indivíduos para termos econômicos: indicadores, modelos de gestão, função de produção, estatísticas de impacto. Ao tornar o mundo mais criativo, inclusivo e diverso, economistas na verdade economicizam a subjetividade e padronizam a expressividade humana em função de sua capacidade de ser traduzida em mecanismos de valoração e mensuração.


Referências teóricas

ABÉLÈS, Marc. “Les Nouveaux Philanthropes”. In: Les Nouveaux riches – un ethnologue dans la Silicon Valley. 2002.

BOELLSTORFF, Tom. Coming of age in Second Life: An anthropologist explores the virtually human. Princeton University Press: Princenton, 2008.

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

CALLON, Michel; MÉADEL, Méadel Cécile; RABEHARIOA, Vololona. L'économie des qualités. In: Politix, vol. 13, n°52, Quatrième trimestre 2000. pp. 211-239.

HOLMES, Douglas R.; MARCUS, George E. Fast Capitalism: Para-Ethnography and the Rise of the Symbolic Analyst. Duke University Press: Durham, 2006.

HOLMES, Douglas. Economy of words: communicative imperatives in central banks. The university of Chicago Press: Chicago, 2014.

MCCLOSKEY, Deirdre. Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern World. University of Chicago Press: Chicago, 2011.


MENGER, Pierre-Michel. The Economics of Creativity: art and achievement under uncertainty. Harvard University Press, Cambridge: 2014.

ONG, Aihwa; COLLIER, Stephen J. Global Assemblages: Technology, Politics and Ethics as anthropological problems. Blackwell Publishing, Malden: 2005.


SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Companhia das Letras: São Paulo, 1999.




[if !supportEndnotes]

[endif]

[if !supportFootnotes][i][endif] Desde o ano de 2004, a UNCTAD promove painéis de discussões com altas lideranças nacionais a respeito do potencial que a criatividade representaria ao desenvolvimento social e econômico. Isso será discutido mais pontualmente na introdução do conceito no contexto brasileiro.

[if !supportFootnotes][ii][endif] A elasticidade-renda da demanda é a variação percentual da quantidade demandada dada uma variação percentual da renda do consumidor. Através da aferição da variação do consumo em relação a renda é possível vislumbrar bens e serviços que permanecem a fazer de diferentes extratos de despesa em cenários de queda ou aumento de renda.

[if !supportFootnotes][iii][endif] (IPEA, 2013: 7)

[if !supportFootnotes][iv][endif] Branding se refere ao campo emergente do marketing destinado à produção de técnicas e estratégias de construção de valor de marca. Enquanto, tradicionalmente, esse setor se ocuparia de manejar lógicas de preço, praça, promoção e produto, denominados pela literatura especializada de “4 P’s”, o Branding se dedica a analisar os “ativos intangíveis” das organizações. O valor de marca entra no composto total do valor da organização e é calculado de acordo com parâmetros determinados.

[if !supportFootnotes][v][endif] Essa topografia das indústrias criativas é fornecida por institutos oficiais ligados ao setor, particularmente o Instituto PwC e o Sistema Firjan.

Desde o ano de 2004, a UNCTAD promove painéis de discussões com altas lideranças nacionais a respeito do potencial que a criatividade representaria ao desenvolvimento social e econômico. Isso será discutido mais pontualmente na introdução do conceito no contexto brasileiro.[endif][vi][if !supportFootnotes]


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