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Que outra Cuba é possível?


A visita de Barack Obama à Cuba ocorrida no último mês é parte de um processo de reaproximação entre os dois países no qual o presidente norte-americano está empenhado pessoalmente. Quaisquer que sejam as suas intensões – cumprir uma promessa de campanha ou consolidar seu prestígio em final de mandato – é certo que ele tem feito um esforço para acabar o bloqueio econômico que vigora a mais de meio século. Na avaliação dos cubanos que permanecem em Cuba, o fim do bloqueio tem sido avaliado como uma vitória no horizonte, afinal ele não asfixiou a Revolução como previam os líderes norte-americanos.


Quem vê as mudanças de fora, e Cuba é um “case” político mundialmente discutido, tende a pensar os desdobramentos em curso a partir das tensões entre socialismo e capitalismo. Quem às vê a partir de Cuba tende o olhar também, e talvez prioritariamente, para outros aspectos. O principal deles diz respeito à questão da autonomia, uma luta incessante dos cubanos desde os tempos do colonialismo espanhol. José Martí, o principal ideólogo da luta contra a independência no final do século XIX - que inspirou Fidel Castro e seu movimento -, havia previsto que o grande perigo para Cuba, ao escapar do domínio espanhol, era sucumbir ao norte-americano. Esta profecia acabou se cumprindo ao longo da primeira metade do século XX e continua sendo um espectro que ronda a Ilha. Não por acaso, no protocolo cumprido por Obama esteve incluída a visitação ao memorial de Martí - e não incluiu um encontro com Fidel. Este pode ter sido um recado sutil dirigido à Obama, de que os cubanos não estão dispostos a negociar sua independência, o que equivaleria a dizer que a dominação que não ocorreu pela força das armas, nem pela asfixia comercial, também não virá pela “brandura” do capital.


Os pronunciamentos de Obana não deixaram de pontuar as diferenças entre os dois países no que concerne ao valor atribuído à democracia e às liberdades individuais, mas ele acabou sendo mais comedido do que a maioria das previsões apontavam. O Partido Comunista Cubano (PCC), que ao fim e ao cabo controla a gestão política e econômica do Estado, não está disposto a discutir, neste momento, questões desta natureza. Talvez isto venha a ocorrer num futuro próximo, a partir de tensões geradas dentro do próprio partido, quando a velha guarda – integrada por pessoas que estiveram diretamente envolvidas com a Revolução, como é o caso dos irmãos Castro – tenha deixado de exercer a influência que ainda reverbera, direta ou indiretamente. Em que pese todas as campanhas difamatórias contra Fidel patrocinadas por cubanos exilados, com amplo apelo da mídia neoliberal internacional, ele ainda é um líder carismático influente. Logo, não há razões para crer em mudanças significativas do ponto de vista político, em que pese muitos intelectuais locais sejam simpáticos à democracia, mas à democracia do tipo participativa, considerada mais inclusiva. Uma reforma radical, incluindo eleições diretas e pluripartidarismo não está nos horizontes cubanos neste momento e os recados de Obama tendem a ser vistos como protocolares.


Do ponto de vista estritamente econômico as negociações avançam num ritmo mais lento que o desejado pelos cubanos, mesmo porque o levante do bloqueio não depende exclusivamente da boa vontade de Obama. Em que pese o interesse de várias empresas norte-americanas em promover negócios com Cuba, para a economia dos USA o fim do bloqueio é insignificante. Para Cuba é o inverso, pois sua economia teria muito a ganhar.


O economista cubano radicado na Espanha, Carmelo Mesa Lago, publicou recentemente um livro – Cuba em la era de Raúl Castro - para avaliar as reformas colocadas em prática pelo atual governo. Mesa Lago sugere que desde a Revolução de 1959 foram lançados 8 reformas substantivas, alternando ciclos de políticas econômicas idealistas (com o incremento de restrições ao livre mercado) e pragmáticos (de liberalização). Desde 2007, quando Raul assumiu o posto de Fidel, tem prevalecido a tendência pragmática e seria ela que estaria guiando uma série de medidas que estão sendo discutidas e implementadas. A aproximação com os USA é parte essencial desta estratégia, embora não seja a única. Cuba não aposta todas as suas fichas no comércio bilateral, evidentemente, pois este seria um caminho que levaria à subserviência, cedo ou tarde. Pelo contrário, Cuba deseja o fim do bloqueio porque ele obstrui praticamente todas as modalidades de comércio transnacionais – além de impedir o atraque em portos norte-americanos de embarcações que tenham aportado em Cuba, o bloqueio impõe pesadas sanções a empresas de outros países que tenham negócios com Cuba.


O único país que efetivamente enfrentou o bloqueio foi a Venezuela e graças a ela Cuba conseguiu superar parte da crise que assolou a Ilha depois da derrocada da URSS. Não custa lembrar que Cuba praticamente não usa outra fonte de energia que não o petróleo e importa mais de 60% dele – praticamente todo fornecido pela Venezuela a preços subsidiados. Uma das fontes de divisas externas mais importantes para o governo são os recursos advindos do trabalho de profissionais em “missão” em países estrangeiros – sobretudo nas áreas de saúde e de educação. Estima-se que o governo da Venezuela empregue em torno de 40 mil profissionais cubanos, sendo que parte expressiva dos salários são pagos diretamente ao governo de Cuba. Chaves foi um amigo generoso – cartazes fazendo referências ao ex-presidente falecido em 2013 são frequentes em várias repartições públicas por toda a Ilha -, mas o chavismo não vai durar eternamente, então é preciso encontrar alternativas para que não ocorra o mesmo que na década de 1990, quando Cuba perdeu praticamente todos os seus parceiros comerciais e a população penou com restrições de energia elétrica, alimentos e produtos de higiene de primeira ordem.


Um dos desdobramentos deste período, chamado por Fidel de “período especial em tempos de paz”, foi a abertura para o turismo estrangeiro e o envio de profissionais para trabalhos remunerados em outros países, que juntos respondem por quase 70% das “exportações”, enquanto a produção de açúcar caiu quase 90% no período pós-soviético e nos últimos anos não corresponde a mais do que 3% das exportações. Atualmente cuba recebe mais do que 3 milhões de turistas anualmente, mais de 50% deles canadenses, e quase todo o investimento em infraestrutura hoteleira foi realizado por estrangeiros. Todavia, tanto a mão de obra quanto a gestão são cubanas, o que significa que o governo detém um controle muito severo em relação à presença deste capital. Tudo indica que este deva ser um dos modelos a ser seguido para parcerias em outros setores da economia, muito embora ele tenha se mostrado pouco sedutor aos investidores estrangeiros, especialmente no caso do setor energético, certamente o mais dramático em razão da dependência cubana.


Por falar em turismo, o potencial cubano é extraordinário e o fim das restrições às viagens dos norte-americanos e a possibilidade de empresas se instalarem na Ilha teria um impacto significativo neste setor da economia, mas tenderia a fazer crescer certas diferenças internas já existentes. Um chofer de táxi em Havana pode amealhar em um dia de trabalho o equivalente ao salário mensal de um médico ou o dobro de um professor. Considerando-se que saúde e educação sempre foram dois argumentos de primeira ordem de quem defende a Revolução, dentro ou fora de Cuba, este exemplo dá uma boa ideia dos dilemas atuais e daqueles que estão por vir. Se o exercício da medicina ainda é algo prestigioso entre a população local, inclusive pelas inúmeras possibilidades de atuar em “missões” estrangeiras, convencer jovens a seguir a carreira do magistério tornou-se cada dia mais difícil. O reflexo disso é a diminuição da qualidade do ensino, que muitos cubanos comentam abertamente. Engenheiros de todas as especialidades dirigindo táxis ou gerenciando pequenos negócios, como albergues ou restaurantes familiares, é algo frequente. O Estado tem tentado adequar estas questões, mas elas são complexas demais para uma instituição tão burocratizada – em Cuba como em qualquer parte. E se já difícil agora, com o incremento da economia de mercado os desafios se multiplicam.


O fim do bloqueio, dizem muitos cubanos, pode ser o fim de uma desculpa convencional para muitos problemas que talvez não tenham a ver unicamente com as restrições norte-americanas. O próprio presidente Raúl Castro tem dado declarações neste sentido e são frequentes artigos publicados no Granma, o periódico oficial do PCC, criticando os baixos índices de produtividade, os problemas de logística e o excesso de empregados do Estado.


A pressão por mudanças é generalizada. Diga-se de passagem, não existe nenhum país no mundo cuja população esteja completamente satisfeita com seus governantes. Em Cuba ela tem uma clivagem geracional muito acentuada – também tem uma clivagem regional e racial que não pode ser explorada aqui. A geração que cresceu no período pós-soviético não teve nem um envolvimento orgânico com a Revolução, nem usufruiu das suas benesses das décadas de 1970 e 80, quando Cuba logrou seus melhores índices de bem estar social. A impressão é de que entre pessoas desta geração com até 30 anos de idade, aproximadamente, o ceticismo é maior. O fato do Estado dispor de um sistema de saúde universalizado e de qualidade não chega a ser um argumento sedutor, porque em geral saúde não é uma preocupação de primeira ordem para a população desta faixa etária. Também há muitas reclamações em relação à educação, pois embora esta seja acessível, há sérios problemas de empregabilidade, o que faz com que os esforços empreendidos na formação tenham retorno limitado, pelo menos do ponto de vista econômico. As ocupações que exigem baixa qualificação seguidamente oferecem retornos mais atrativos, tanto no mercado do turismo quanto no mercado informal, que prolifera na medida em que aumenta a quantidade de dinheiro em circulação.


Outro aspecto que preocupa a intelectualidade local tem a ver com o apelo ao consumo entre a população mais jovem. Mesmo havendo restrições em relação ao uso da internet –por razões técnicas, segundo alegação oficial -, os jovens tem tido acesso às tendências de consumo internacional, sejam elas expressas pela música, pelo vestuário ou até mesmo pelo corte de cabelo – algo que está ao alcance de todos. Não há, entre esses jovens, o mesmo tipo de sensibilidade em relação aos valores coletivos como ocorreu nos primeiros anos da Revolução, quando as brigadas estudantis se lançaram ao interior da Ilha para alfabetizar os camponeses ou auxiliar na colheita da cana durante o período de férias escolares. Este tipo de apelo pode ser eficaz em circunstâncias específicas, quando adquirem uma conotação ritualística. Como todo ritual tem um tempo de encantamento e, portanto, de duração, seus efeitos podem ser extraordinários, mas não duradouros. Aliás, a queixa das gerações mais velhas, que se envolveram de corpo e alma com a Revolução, é uma constante em relação às novas gerações, consideradas despolitizadas, materialistas e hedonistas. Reverter este quadro é tarefa quase impossível, pois a cosmopolítica contemporânea está impregnada por valores individualistas – poderíamos tomar como exemplo as lutas travadas no campo dos direitos sexuais, toda ela permeada por reivindicações em cuja base encontram-se as liberdades individuais – e Cuba só é uma ilha do ponto de vista geográfico. Em outras palavras, este é mais um dos tantos desafios a serem equacionados, que tende a se exacerbar com a abertura econômica e política.


Seja como for, não se deve esperar mudanças drásticas em Cuba, mesmo com o fim do bloqueio, caso ele venha a se confirmar. Pelo menos não teremos algo parecido com o que se passou no Leste Europeu. A tendência hegemônica nos altos escalões do PCC e do governo indicam uma transição mais próxima do que ocorreu no Vietnã e na China – com quem o governo cubano tem procurado estabelecer diferentes modalidades de intercâmbio. Isto significa um incremento da economia de mercado, mas com o controle do Estado até onde for possível. A manutenção de certas conquistas da Revolução – saúde e educação universais, renda mínima e assistência social, entre outras – depende do sucesso desta transição. Mas também há desafios em outras esferas além da econômica, como é o caso de tensões raciais, de gênero e regionais, entre outras.


O paraíso não existe em parte alguma, mas é possível – quiçá necessário – alimentar utopias. A utopia de Cuba, a mais de um século, é pela autonomia, e o fim do bloqueio pode significar muito a este respeito, mas não será o fim da história. Os cubanos que vivem em Cuba tem muito orgulho da sua história e isto faz crer que eles seguirão “luchando”, como tem feito cotidianamente, contra toda sorte de adversidades, incluindo-se as predições e estratagemas neoliberais que simularam uma ruína que jamais se confirmou. Jesus, um senhor de pouco mais de setenta anos, com quem conversei por longo tempo sobre os “problemas cubanos”, embargou a voz quando me contou da felicidade experenciada no dia em que a bandeira cubana voltou a ser hasteada em Washington, na reabertura da embaixada, em julho de 2015. Ele justificou a inflexão na sua narrativa pelo fato de que, ao lembrar daquela bandeira esvoaçante, sentia que “todo o esforço e o sacrifício do povo cubano tinha valido a pena. Foi uma luta desigual, de Davi contra Golias, e nós vencemos! Até fome passamos, mas não nos entregamos!”

Nota: uma primeira versão em inglês foi publicada na revista Huck Magazine - http://www.huckmagazine.com/art-and-culture/obamas-historic-visit-cuba-now-happens/

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