top of page

"Nós vendemos um sonho": notas sobre o mercado de casamentos e a "boda espetáculo&quo


Entre os antropólogos interessados no estudo das relações econômicas, a observação dos mercados tem se demonstrado um campo de crescente interesse. Tem sido produzidas, assim, nos últimos anos, etnografias sobre mercados os mais diversos. A pesquisa que ora desenvolvo se insere nesse esforço coletivo de compreensão dos mercados e das relações sociais neles imbricadas, a partir do caso específico do "mercado de casamentos". A expressão, que pode ser familiar àqueles que já passaram pela experiência de organizar uma festa de casamento, carece de alguma explicação.


Sob uma perspectiva demográfica, algumas pessoas poderiam pensar, diante da expressão "mercado de casamentos", em um mercado metafórico de formação de alianças, formado pela oferta e demanda de cônjuges em potencial. Isso porque a palavra "casamento" se serve, no idioma português, a designar tanto uma instituição social, que tem um sinônimo no termo "matrimônio", quanto os ritos e festividades que instituem a união de duas pessoas. Para a segunda acepção, a língua portuguesa registra o termo "boda", com o significado de "celebração e festa de casamento". Trata-se, contudo, de um termo pouco usado. Por esse motivo, opto, nesse texto e em minha pesquisa, pela utilização da expressão "mercado de casamentos", assim como popularizado pela mídia e entre os sujeitos que pesquisei.


Foi a inquietação com um aparente paradoxo do Brasil contemporâneo que me instigou a iniciar uma pesquisa etnográfica sobre o mercado de casamentos. No Brasil das últimas décadas, o número de casamentos sofreu um brusco declínio. Ao mesmo tempo, nas últimas duas décadas, uma mudança tem acompanhado os rituais de casamentos. Entre homens e mulheres pertencentes às camadas médias urbanas, observa-se o interesse crescente na realização do rito com grandes festejos transformando as bodas em eventos aparentemente anacrônicos. As mulheres estão à frente do fenômeno e são unanimemente identificadas, pelos agentes desse mercado, como seu o público alvo preferencial. Longe de ser identificadas com as "moçoilas casadoiras" de meados do século passado, elas têm formação universitária, profissão e renda própria. Casam-se cada vez mais tarde e, em muitos casos, o fazem após um período mais ou menos longo de coabitação com o parceiro. No entanto, quando decidem oficializar a união, essas mesmas mulheres marcam o momento com um festejo de grandes proporções, investindo nesse projeto grandes quantidades de tempo, afeto, energia e recursos materiais. Diante desse quadro, poderíamos nos perguntar: estaríamos retrocedendo, então, com moda de um rito que parece tão tradicional? Afinal, quais valores estariam sendo expressados pelos sujeitos que optam pela elaboração de longos, custosos e complexos ritos de casamento contemporâneos? Esses são alguns dos questionamentos que norteiam minha pesquisa.


O fenômeno que acabo de descrever pode ser chamado na acepção da antropóloga francesa Martine Segalen (2003), de "casamento espetáculo". Como sugere a autora citada, o interesse em fazer dos casamentos grandes festas tem se renovado e levado as bodas a se alongar em duração. Nesse processo, novas etapas vão se impondo como ritualizações necessárias, de que são exemplo as festas de noivado, os chás de panela, as despedidas de solteira. O mercado que reúne os produtos e serviços envolvidos nessa modalidade de festas cresce a cada ano. Para 2015, a estimativa do lucro obtido pelo setor ficou em torno de 15 bilhões de reais. Em matérias recentes de jornais, o segmento tem sido repetidamente descrito como "à prova de crise". Nos textos midiáticos, assim como nas falas de profissionais do setor com os quais pude conversar, a explicação passa pela categoria "sonho": o casamento seria um sonho há muito imaginado por aqueles que promovem esse tipo de evento. Nesse mercado, o consumo é custeado não somente pelos rendimentos imediatos ou recentes, mas sobretudo por reservas financeiras separadas previamente. A crise, por esse motivo, não afetaria tanto esse mercado.


Para pesquisar o mercado de casamentos, optei por desenvolver uma etnografia multissituada. Entre os anos de 2013 e 2016, visitei feiras de casamentos, em Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo. Nessas cidades, também realizei entrevistas em profundidade com mulheres que planejavam suas bodas e com profissionais do setor. Além disso, em 2015 e início de 2016, acompanhei o trabalho de uma profissional da organização de eventos, em Fortaleza, participando da preparação e realização dos casamentos, como parte da equipe da pesquisada.


Nas entrevistas com os profissionais do setor, sobretudo as organizadoras de casamentos, chamou-me a atenção a frequência com que se repetia a afirmação de que o casamento era "o sonho de toda mulher". Entre as noivas, no entanto, eu ouvia uma outra versão dessa ideia: embora algumas dissessem sempre ter sonhado com o casamento, a maioria falava sobre um sonho que não existia previamente ou tinha contornos apenas pálidos. O próprio contato com o mercado, com o chamado "universo dos casamentos", era apontado como responsável por instigar o sonho e definir-lhe a forma. "Foi visitando as feiras do setor que eu descobri o que uma festa de casamento deveria ter", elas diziam. Em suma, o próprio mercado, formado por inúmeras redes de agentes organizadas em torno de produtos e serviços diversos, exercia papel ativo na construção do sonho de ter um "casamento espetáculo". As feiras especializadas, assim como a oferta crescente de serviços, produzem um novo momento da relação dessas mulheres com o casamento. Trata-se, assim, de novos agenciamentos de mercado (CALLON, 2013), aos quais correspondem novas sensibilidades.

Referências bibliográficas

CALLON, Michel. Qu’est-ce qu’un agencement marchand. Sociologie des agencements marchands, p. 325-440, 2013.

SEGALEN, Martine. Éloge du mariage. Gallimard, 2003.

Notas

1 "Indústria do casamento movimenta R$ 15 bilhões por ano no Brasil".

http://g1.globo.com/globo-news/contacorrente/noticia/2015/04/industria-do-casamento-movimenta-r-15-bilhoes-por-ano-no-brasil.html

2 "Segmento voltado a casamento não sofre com a crise".

http://economia.estadao.com.br/blogs/sua-oportunidade/segmento-voltado-a-casamento-nao-sofre-com-a-crise/

3 A classificação do mercado de casamento como à prova de crise está longe, no entanto, de ser um consenso. Profissionais por mim entrevistadas divergem quanto ao tópico. As organizadoras de eventos estão entre as que mais referem efeitos negativos da crise sobre a procura de seus serviços.

bottom of page