top of page

Uma etnografia sobre suicídio assistido: quando a experiência de doutorado sanduíche vai além do vín

O antropólogo Marcos Freire de Andrade Neves, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), retornou ao Brasil em abril, após passar quase dois anos e meio realizando sua etnografia sobre suicídio assistido na Europa. Durante o doutorado sanduíche financiado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), o pesquisador esteve ligado à Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, e percorreu o cenário do direito à morte seguindo fluxos internacionais de pessoas, informações e medicamentos. Como procedimentos do gênero são proibidos no Brasil, mas legitimados e praticados em outros contextos, ele atravessou o Atlântico antes do final do primeiro ano de doutorado, pois estar em solo europeu era necessário para a realização do trabalho de campo.

Esta não é a sua primeira incursão na temática da morte. Em 2014, Marcos defendeu a dissertação Por Onde Vivem os Mortos: O processo de fabricação da morte e da pessoa morta no segmento funerário de Porto Alegre, orientado pelo Dr. Arlei Sander Damo, mesmo professor que acompanha o atual trabalho. A pesquisa de mestrado foi eleita melhor dissertação daquele ano por professores do PPGAS/UFRGS e será lançada em forma de livro em breve. Hoje, além de se dedicar à escrita da tese, que será defendida em 2018, Marcos integra o Grupo de Antropologia da Economia e da Política (GAEP), vinculado ao Núcleo de Pesquisa sobre Culturas Contemporâneas (NUPECS).

Marcos, poderia falar um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e sobre o seu atual tema de pesquisa no doutorado?

Eu tenho graduação em Ciências Sociais pela UFRGS e mestrado em Antropologia Social também pela UFRGS. O professor Arlei Sander Damo, meu orientador hoje, me orienta desde a graduação, quando fiz uma pesquisa sobre formação de lideranças comunitárias no espectro do Orçamento Participativo, mais especificamente na Vila Chocolatão (em Porto Alegre). Na hora de escrever o TCC, acabei focando na Vila Chocolatão, porque ela seria removida para a periferia, e peguei bem esse momento. Quando fiz a seleção do mestrado, propus ao Arlei uma pesquisa sobre relação entre afeto e dinheiro, e expliquei que seria no contexto da morte. Arlei pensou que seria diferente, que seria sobre disputas familiares sobre herança, tema clássico na Antropologia. Expliquei que não, que faria em funerárias, no complexo funerário de Porto Alegre. E o meu orientador achou que não daria certo (risos). Ele conta isso no prefácio do meu livro que vai sair agora. Porque é um mercado mal-afamado e fechado. O Arlei achou que ninguém gostaria de ter um antropólogo bisbilhotando esse mercado, que as empresas não me deixariam entrar e tal. Mas entrei e me dei conta de que não dava para falar só em mercado, que eu tinha que trabalhar com a produção da pessoa morta, um estatuto jurídico específico de uma pessoa que transita pelo mercado funerário. Depois, para o doutorado, propus eutanásia voluntária e suicídio assistido.

Isso implicava, já no projeto, uma pesquisa no Exterior...

Sim, implicava sanduíche, implicava uma pesquisa de longo prazo fora. A pesquisa, idealmente, começaria na Suíça, e eu larguei a ideia de eutanásia voluntária, ficando na de suicídio assistido. A Suíça é o centro motor disso. E eu queria trabalhar com a ideia de mobilidade, porque muita gente vai para lá para fazer o suicídio assistido.

Quando você começou a pensar no doutorado sanduíche?

Comecei a ver as possibilidades na produção do projeto para a seleção de doutorado. Eu ainda estava no mestrado. A seleção para a bolsa do DAAD foi junto com o início do doutorado. As aulas do doutorado (na UFRGS) começam em março; em abril, enviei os documentos para o DAAD; em setembro, fui aprovado; no final de novembro eu tinha que estar lá (na Alemanha). É que a seleção para o financiamento só abre uma vez por ano, se esperasse pelo ano seguinte, não poderia ficar o tempo que queria. A minha pesquisa exigiria um tempo maior lá fora.

Por que buscar financiamento no DAAD?

Eu conhecia o DAAD, conhecia algumas pessoas na Alemanha, professores, colegas da Antropologia. Eu não tinha familiaridade com as agências de financiamento na Suíça. Então pensei em ficar perto da Suíça, de maneira que eu pudesse ir para lá fazer a pesquisa, mas que não fosse um país tão caro. Na Alemanha, eu tinha mais possibilidades de conseguir financiamento. Sabia que o DAAD oferece uma modalidade de bolsa sanduíche de 24 meses, mais um curso de alemão, que pode ser de dois, quatro ou seis meses. Fiz esse pedido e ganhei os 24 meses, além de quatro meses de curso de alemão. Esse edital do DAAD era em parceria com a CAPES e o CNPq.

Poderia explicar melhor o que é o DAAD?

É uma instituição de fomento à pesquisa que oferece bolsa de várias modalidades, de graduação a pós-graduação. É enorme em questões orçamentárias e em número de bolsistas e se dirige a pessoas com interesse de estudar na Alemanha. Fui para lá durante a graduação pelo DAAD com a ideia de dar uma continuidade depois. O edital do qual eu participei no doutorado tem uma chamada anual.

Falar alemão é pré-requisito?

Não. Dependendo da área, podem te cobrar um conhecimento prévio, sim. Mas não é pré-requisito. Tanto que até te pagam um curso de alemão. Às vezes, o orientador na Alemanha pode escrever na carta de aceite dizendo que tu tens conhecimento suficiente para assistir às aulas. Muitas das aulas são em inglês. Conheço gente que foi com pouco aprimoramento desses idiomas e conseguiu rapidamente. O ideal, claro, é ter conhecimento de inglês.

Você precisou qualificar o seu trabalho antes de embarcar para o sanduíche?

Sim, pela UFRGS, só pode ir para o sanduíche depois de qualificar, e a gente tem até o quinto semestre do curso para fazer isso. Como a qualificação exige dois capítulos da tese, assim que saiu o resultado do DAAD, em setembro, eu tive dois meses e pouco para escrever os dois capítulos, qualificar e viajar. Fiz isso com o que eu tinha na época, que era mais teórico, e havia uma pesquisa com pessoas envolvidas na área, gente com quem eu falava por Skype. Fiz a qualificação em novembro com uma banca formada com a Juliana Lopes de Macedo (então pós-doutoranda no PPGAS/UFRGS), o Emerson Giumbelli (PPGAS/UFRGS) e a Rachel Aisengart Menezes (Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ [IESC/UFRJ]). No dia seguinte, embarquei para Berlim. Fiz a qualificação no final do segundo semestre porque, se eu esperasse para fazer no ano seguinte, ficaria só um ano no sanduíche, no máximo. No meu caso, não precisava apenas de um sanduíche com vínculo institucional, para escrever, ter orientações, assistir a aulas. Eu tinha que fazer campo.

Então você foi para Berlim, mas seu campo seria na Suíça...

Foi um pouco mais complicado (risos). A ideia inicial era começar na Suíça, porque é o país que mais se associa ao suicídio assistido. É legal em outros contextos, em outras jurisdições, mas a Suíça tem um cenário de organizações que trabalham com isso, que aceitam estrangeiros. Cheguei à Suíça e vi que lá era a etapa do procedimento técnico, e muita coisa interessante acontece em outros lugares. São coisas que as pessoas fazem antes de ir lá. Ficando só na Suíça, eu não veria a mobilidade, o processo, nada. Não teria acesso a mais do que 20 minutos que antecedem ao procedimento, que é quando a pessoa assina os papéis. Seria o máximo que eu poderia acessar. Tive que reformular (o projeto). Não era ficar em Berlim e ir para a Suíça, porque essa dinâmica não é territorializada. Eu precisava entender quais conexões faziam as pessoas irem para a Suíça. Tentei mapear isso. Há várias organizações naquele país, eu fiz contato com três, visitei duas, mas meu trabalho se centrou mais em uma.

O que é uma organização?

A organização oferece “o assistido”, o auxílio ao procedimento do suicídio. Fiquei sabendo que estrangeiros iam para uma dessas organizações e que havia uma médica com quem tinham muito contato na Escócia. Aí eles me colocaram em contato com essa médica, e eu comecei a enxergar a mobilidade. Tinha outro médico na Alemanha que me recomendaram. Então fui à Escócia, falei com essa médica, e ela também me recomendou o mesmo médico da Alemanha. Daí eu comecei a triangular e ver os fluxos. A partir desses três contextos – Alemanha, Suíça e Escócia –, achei advogados, médicos, leigos, políticos e comecei a seguir tudo isso e a viajar. Ia bastante para Hamburgo, por exemplo, onde tem uma organização. Viajava para encontrar pessoas que iam fazer o procedimento, ia para a casa delas. E ia para a Holanda, para a França, para outros lugares em busca desses fluxos. A ideia inicial da Suíça mostrou que o cenário é dinâmico. Não dava para ficar lá. Fui mapeando diferentes fluxos, mobilidades de pessoas, de medicamentos e de informação para fazer o suicídio assistido acontecer. As pessoas se conectam para fazer e agilizar tudo isso, e isso acabou sendo o foco.

E o foco ficou na Europa?

Sim. Fui a um congresso especializado em eutanásia, em Amsterdam. Foi interessante, porque a maior parte das pessoas com quem eu falava na Alemanha, na Escócia, na Suíça, estava lá. Eu as vi todas no mesmo lugar. E tinha gente de outros países, do Japão, tinha um brasileiro. Eu tinha uma ajuda do DAAD para fazer trabalho de campo também. Mas tinha que focar em algum cenário, em algo que fosse viável, e que já era grande, então optei pela Europa. A cada contexto que incluo (na pesquisa), preciso colocar a legislação, o histórico. Seria impossível fazer algo mais amplo ainda.

Pode-se dizer que a prática do suicídio assistido é mais concentrada na Europa?

Acho que sim. Até porque é um dos poucos lugares com contextos de suicídio assistido institucionalizado. A Colômbia permite certo tipo de procedimento, o Canadá também, assim como alguns estados nos Estados Unidos. Só que são legislações recentes. A lei na Holanda é da década de 1980. A Suíça não tem uma lei positiva específica – não permite, mas não proíbe –, mas tem uma legislação do começo do século XX.

Como você conheceu o Dr. Hansjörg Dilger, seu orientador em Berlim?

Já tinha visto algumas coisas dele, que trabalha com antropologia médica e da religião. Antropologia médica é uma área que está crescendo bastante em países de língua alemã, como Alemanha, Suíça e Áustria. Eu sabia que eu queria ficar em Berlim, então fui ao site do Departamento de Antropologia Médica da Universidade Livre de Berlim, vi esse professor lá e entrei em contato. Expliquei por e-mail qual seria a pesquisa, ele gostou, mas tinha muitos orientandos. Coincidiu de eu ir para a Alemanha naquele ano, encontrei com ele pessoalmente e ele me aceitou. O que conta muito para conseguir o financiamento é ter uma boa carta de aceite do orientador. Depois, ele acompanhou a pesquisa bem de perto, e ele me ajudava. Era uma relação que, no começo, foi diferente. Eu vinha de muitos anos de orientação com o Arlei, que é uma pessoa próxima e que foi bastante presente. No início, minha relação com o orientador da Alemanha foi bem institucional. Eu mandava e-mails para a secretária, a gente marcava com antecedência. Mas ele foi atencioso com a minha adaptação. Com o tempo, a gente saia para almoçar, debatia o trabalho. Ele imaginava que eu faria a pesquisa na Suíça, e pareceu um pouco em dúvida se a pesquisa seria viável quando falei que seguiria as redes (risos). Mas não interferiu. Sempre me deu apoio, me chamava para participar de eventos, para o grupo de Antropologia Médica. Lia os meus textos, comentava, dava indicações de leitura.

Como era a rotina acadêmica em meio a tantas viagens?

O primeiro ano foi basicamente de adaptação no instituto, que tem vários grupos de pesquisa. Circulei por alguns, conheci professores, colegas... Criei uma rotina de trabalho e fui atrás das pessoas para entrevistar e fazer campo. Cheguei lá sem nenhuma porta aberta no campo. Fui atrás de tudo, de gente, de organizações. Uma médica de uma organização me respondeu dizendo que poderia me receber, mas ela me deu uma série de lições de casa – eu tinha que ler um livro, ver um documentário, outras coisas. Fiz tudo, liguei para ela e disse “tá feito!”. Ela me recebeu, e, a partir daí, me abriu as portas da organização, me apresentou a médica na Escócia, o médico na Alemanha, ela foi me chamando para presenciar coisas e eventos. Ela abriu as portas para essa rede de pessoas que acabei etnografando depois. O primeiro ano foi isso. No segundo ano, comecei a aproveitar isso, a viajar para entrevistar, fazer observação participante nas organizações. Na metade do segundo ano, eu já não estava mais correndo atrás das entrevistas, mas eram as pessoas que vinham me procurar. A organização passou um e-mail para seus membros falando sobre a pesquisa e meu telefone não parou mais, passei a receber e-mail o tempo inteiro. E eu passei a ter uma carga de viagens pesada. Embora falasse com as pessoas por Skype e telefone, não era o ideal, e eu preferia ir até elas. A maior parte das conversas, a partir daí, ocorriam presencialmente.

Essas pessoas eram quem? As que fariam o suicídio assistido?

Nessa segunda metade do segundo ano, sim, eram majoritariamente pessoas que estavam se preparando para fazer o procedimento, e algumas fizeram. Até a metade do segundo ano, meus participantes de pesquisa eram mais especialistas. Eram médicos, políticos, advogados, assistentes, gente que dava assistência. Eu tinha poucos membros de organização.

“Membros de organização”, então, seriam pessoas que fazem o procedimento?

Sim, porque eu não as chamo de pacientes. Elas não são pacientes. Não estamos falando em organizações médicas, embora possam ser mantidas por médicos. Não são clínicas. Na Alemanha, por exemplo, o dono da organização é advogado.

Como foi lidar com questões emocionais num contexto desses e longe do Brasil? A distância foi um problema?

Desde 2008, tenho uma relação próxima com a Alemanha. É terra estrangeira, mas me é familiar. Tenho suporte afetivo, tenho amigos lá. Mas, sim, era pesado. Havia casos mais difíceis, outros menos. Dependia da relação que desenvolvia com as pessoas. Teve vezes que fiquei bem mal, outras não me afetaram muito. Era imprevisível. No final do trabalho de campo, eu estava mal, cansado. Estava mal porque saía o tempo todo com pessoas que eu admirava, sobretudo pela coragem, mas que estavam passando por isso. Houve casos que me deixaram muito desanimado. E o último trabalho de campo foi uma coisa tão emocionalmente pesada e, ao mesmo tempo, tão próxima, tão bonita, uma relação legal que me deu um gás, que me tirou o desânimo. Foi com uma senhora que será o fio condutor da tese. Ficamos próximos.

Ela fez o procedimento?

Fez. No dia 20 de outubro do ano passado. Eu estava junto. Assisti a outros, mas o caso dela foi o último e o mais intenso para mim. Era alguém com quem eu saí para comer, e ela me ligava todas as semanas. Ela me ligava para perguntar se eu estava bem, para me dar um “oi”. Ela me mandava cartas. Foi um tipo de relação diferente, mais próxima, e ela queria que eu fosse junto ao procedimento. Dia 19 de outubro, eu cheguei à Suíça – ela chegou lá no dia anterior — e fui para o hotel onde ela estava hospedada. Jantamos juntos, só nós dois, e conversamos bastante sobre tudo. No dia seguinte, teve o procedimento. Eu diria que foi o ponto de inflexão da pesquisa, e era o último dia do trabalho de campo. É algo que estou trabalhando. Preciso ver como vai impactar na tese.

A sua tese terá uma versão em inglês?

Ela será em inglês, por causa de um acordo que fiz com meus interlocutores na Alemanha, na Suíça e na Escócia. Porque todas as pessoas com quem eu falei na minha pesquisa falam inglês. Se eu escrever em português, eles não poderão ler e não teriam o retorno. Há muitos países tentando aprovar legislação, então tudo o que é produzido pode ser usado na discussão. Escrever a tese em inglês foi um compromisso ético que assumi para eles acessarem a pesquisa, o que é urgente. Depois posso pensar em desmembrá-la em artigos em português.

Mas a defesa será na UFRGS, em Porto Alegre, certo?

Sim, e o meu orientador da Alemanha quer vir. Não sei como será a questão do idioma, mas ele quer participar.


bottom of page