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“Maputo já conquistou meu coração”: aventuras na escrita e inquietações na vida conduzem antropóloga


​Nas últimas semanas do processo de escrita da sua dissertação, Júlia Cardoni estava exausta. Parecia não ter fim a etapa derradeira de uma jornada acadêmica cujo trabalho de campo fora tão prazeroso. Aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ela se dedicou com vigor à etnografia, permitindo se afetar com as vivências junto a agricultores agroecológicos no Rio Grande do Sul, nutrindo-se de amizades, encantamentos e emoções ao longo da investigação.

A composição textual, no entanto, não fluiu tão prontamente quanto ela esperava, e o orientador, o professor Arlei Sander Damo, confiando no potencial da aluna e da pesquisa, insistiu nas alterações até o último minuto. Em junho passado, a dissertação “A Natureza Ensina: uma etnografia sobre modos de fazer mercado na Feira de Agricultores Ecologistas” foi apresentada à banca avaliadora; e Júlia, aprovada com louvor.

Na semana seguinte à defesa, a recém-mestra desembarcou em Maputo, capital de Moçambique, como integrante de uma missão internacional de capacitação de jovens pesquisadores em comunidades periféricas. Uma aventura resultante da combinação de experiências acadêmicas, profissionais e emocionais diversas que ela soube orquestrar. O mais curioso é que a ideia de se candidatar a uma vaga nesse projeto se constituiu em meio a angústias noturnas do processo de escrita da dissertação: foi numa pausa para escrever sobre si mesma que a jovem antropóloga compôs a carta de motivação que a ajudou a cruzar o Atlântico e redigir um roteiro alternativo para a sua trajetória na Antropologia.


Júlia, de onde veio seu interesse pela Antropologia?

Quando eu estava no Ensino Médio, parecia ser um tipo de vida com muitas aventuras, com muitas viagens, muitos passeios (risos). Eu tinha uma ideia romântica do que seria essa profissão. Bom, quando fiz vestibular para Ciências Sociais, já pensava na Antropologia. Entrei na graduação em 2009 e, após um ano de curso, fui morar em Israel como parte de um projeto de jovens sobre educação democrática e não formal. Morei em kibbutz, fiz atividades coletivas e vivi outras experiências. Voltei para a faculdade decidida a continuar vinculando o estudo teórico das Ciências Sociais, que tem uma carga de leitura densa, com a prática de pesquisa empírica.


Durante a graduação, você passou mais um período nos Estados Unidos, certo?

Sim, no meio do curso, surgiu uma oportunidade de estudar na Universidade da Flórida. Naquela época, havia bolsas para isso. E descobri outros caminhos na Antropologia, como a temática da globalização, um assunto que eu ainda não havia acessado na UFRGS. No meu retorno a Porto Alegre, busquei a linha de pesquisa da Antropologia Econômica, que se relacionava com o que eu havia lido nos Estados Unidos. Nessa mesma época, resolvi buscar possibilidades de emprego para continuar no campo, algo que eu pudesse conciliar com a faculdade.


Qual tipo de emprego?

Busquei pela internet empresas de pesquisa de mercado e mandei e-mails para todos os lados. E recebi algumas respostas. A partir daí, comecei a trabalhar como estagiária em duas empresas. Fazia pesquisa qualitativa e pesquisa de mercado, de avaliação de produtos e serviços. Consegui validar esses estágios como créditos no meu currículo da graduação. Também participei do PET, o Programa de Educação Tutorial. Esta foi uma experiência legal, mas ainda era algo muito acadêmico, muito voltado para dentro da universidade. Eu sentia necessidade de ir atrás de outras possibilidades.


Por que pesquisa de mercado?

Porque é um campo de atuação da nossa profissão, é uma possibilidade de trabalho. Na verdade, nossa formação de cientista social é mais direcionada para o mundo acadêmico ou para concursos públicos. Só que esse mundo de mercado apareceu, e eu me envolvi. E isso foi importante para minha trajetória. Acredito que consegui aguçar a minha sensibilidade para a pesquisa nessa experiência combinada a leituras e debates acadêmicos. Reuni a bagagem teórica e uma atividade prática para além dos exercícios etnográficos que fazemos em aula e que, em geral, circulam dentro da universidade.


Mas a pesquisa de mercado pode ser superficial e rasa.

Sim. Por isso, depois de um tempo, resolvi tentar o mestrado em Antropologia e me aproximei mais da Antropologia Econômica. Queria compreender as relações entre pessoas e coisas e circuitos de afeto e de consumo. Fui atrás do professor Arlei, que já era referência para mim. Mandei um e-mail para ele e, no dia seguinte, recebi sua resposta: “Vamos marcar uma reunião?”. E eu falei: “Opa!”. Naquele momento, ele sugeriu que eu concorresse a uma bolsa, e virei bolsista dele. Deixei de lado minhas pesquisas de mercado para me dedicar à seleção do mestrado.


E qual era o projeto?

Na época, estava ligado a trabalho colaborativo. Entrei no curso, mas ainda estava indecisa sobre esse tema, que eu já vinha estudando desde o final da graduação. E surgiu a ideia de explorar o mercado agroecológico e suas muitas negociações, como as morais e as afetivas. Estava imersa na Antropologia Econômica, porém o campo me colocou em diálogo com outras áreas, como a Antropologia da Alimentação, a Antropologia Visual, a Antropologia Urbana. Era uma bagagem que eu trazia da graduação e que fazia todo o sentido naquele contexto. Assim, o mestrado foi um retorno a tudo o que eu tinha estudado. Defendi meu trabalho no final de junho.


Por que você não emendou a seleção do doutorado?

Porque eu teria que fazer a prova durante a escrita da dissertação, e eu estava muito envolvida. Na verdade, o campo foi muito fácil, com relações muito profundas e duradouras. Elas persistem e vão persistir pelo resto da vida. Só que eu não esperava apanhar tanto no processo de escrita (risos).


O que aconteceu?

Acho que somos muito incentivados a escrever na faculdade e na pós, só que a gente não tem parâmetro do que é uma boa escrita. Na produção da dissertação, quando eu mostrava meu trabalho para meu orientador e recebia um retorno, via o quanto eu precisava desenvolver a escrita, o quanto ainda precisava articular as minhas ideias. Eu me dei conta de que não tinha esse treino. De repente, percebi a necessidade de começar a escrever e aprofundar, melhorar. Achava que ia chegar “aquele momento” em que bastava sentar na frente do computador e escrever, e tudo fluiria porque tudo já estava dentro de mim. Só que não é assim. O primeiro texto que a gente faz é muito ruim, o segundo é ruim, e é a partir do terceiro que fica um pouco melhor. É o processo.


Nesse “processo”, você fez uma coisa “escondida”.

(Risos) Foi isso mesmo (risos). Um contato de um contato de um contato postou um anúncio na internet e apareceu no meu mural no Facebook. Falava em uma vaga para pesquisador social em Moçambique, na África. Algo como uma vaga para trabalho com empoderamento feminino, sem qualquer explicação detalhada. Só dizia que estava vinculada a um projeto internacional e que, para concorrer, era necessário preparar uma carta de motivação, um currículo e um plano de estudos ligado à pesquisa social para atuar junto a bairros periféricos da capital de Moçambique, que é Maputo.


E a escrita mudou o rumo das coisas.

Verdade (risos). Chegou um momento em que eu estava muito desgastada com a escrita da minha dissertação, já no fim. Numa noite, exausta, resolvi escrever sobre qualquer outra coisa, sobre a minha vida. No final da primeira página, vi que já tinha uma carta de motivação, um texto mostrando quais eram os meus desejos para os próximos anos. Enviei essa carta para o tal projeto na África com meu currículo, sem nenhuma esperança. E não contei para ninguém, até para não criar expectativas. Mesmo sem expectativa, comecei a mapear as opções de Airbnb de Maputo (risos).


Escreveu a carta em inglês?

Não, em português, que é a língua oficial de Moçambique, mas a vaga exigia domínio de inglês e de português. E tenho os dois idiomas.


O que aconteceu depois?

Na semana seguinte, veio resposta de que tinham recebido meus documentos. Pouco tempo depois, marcaram uma entrevista por Skype. Marcaram para as 14h, horário de Maputo. Só que calculei o fuso ao contrário, o que quase me fez perder a vaga. Isso porque eu achava que a entrevista seria às 19h no Brasil, e era às 9h (risos). Então acordei e vi que havia um recado. Eu já estava atrasada! Corri para o computador e fiz a entrevista, gripada e descabelada. Bom, tinha que falar sobre o que eu gostaria de fazer nessa vaga de pesquisadora social. A essa altura, eles já tinham ideia.


Como era a sua proposta de trabalho?

Montei um curso baseado nas minhas experiências pedagógicas com educação democrática e não formal. Inclui muita dinâmica de grupo, que eu trazia das minhas experiências de mercado, e um viés humanista aprendido na academia, e ficou interessante. No mesmo dia, logo depois, recebi uma mensagem na qual me ofereciam a vaga. Nem acreditei. Daí contei para a minha família no almoço. Disse: “Pessoal, estou me mudando para Moçambique em duas semanas” (risos). Foi uma correria. Em seguida foi minha banca e, na outra semana, eu já estava aqui (em Maputo).


E como está a experiência aí?

Incrível! Maputo já conquistou o meu coração. Estou descobrindo esse mundo. São muitas redes internacionais, a maioria de países europeus. O programa ao qual estou vinculada é financiado pelo Department of International Development e gerenciado por Oxford Policy Management (OPM). Esse programa é muito bonito, pois segue algumas diretrizes de empoderamento feminino através do trabalho digno. Um dos objetivos é capacitar mulheres moçambicanas, ou jovens raparigas, como dizem aqui, a acessar o mercado de trabalho e alcançar outras formas de empoderamento social e econômico. Meu trabalho é vinculado a um grupo de jovens em Chamanculo, que é grande favela urbana, uma das maiores do país. Trabalho com um grupo de jovens que se tornarão pesquisadores sociais. Então estou dando um curso de capacitação para esses jovens. Nesse curso, faço pesquisas ligadas a problemáticas existentes dentro das comunidades. A ideia é, a partir das pesquisas, conscientizar e criar planos de atuação. É um trabalho que traz muita realização pessoal. Além de ser na área de pesquisa social, qualitativa, dentro desse envolvimento com os estudantes, tem um impacto significativo dentro daquela localidade. Estou aqui para seis meses, mas, se quiserem que eu fique mais um tempo, eu adoraria.


No fim das contas, foi interessante não emendar mestrado e doutorado.

Sim. E acho que não é tão evidente enxergar caminhos alternativos na nossa formação. Permanecer na academia e fazer carreira dentro dela pode ser o sonho para alguns de nós, assim como estar sempre pesquisando temas que queremos, que nos interessam, em diálogo com os colegas. No entanto, é um caminho duro, incerto, que envolve pelo menos 12 anos de estudo, muitas publicações, muitos concursos, congressos. Pode ser complicado. Para mim, um caminho mais fácil me trouxe para a África (risos). Na verdade, sempre senti que precisava buscar caminhos de atuação na Antropologia que me dessem a possibilidade de trabalhar com pessoas. Dentro da academia, às vezes, falta a criação de vínculos, em parte pela pressa acadêmica e pela necessidade da produtividade. Relações humanas são, em muitos casos, deixadas de lado, embora sejam fundamentais para o trabalho etnográfico. Não quero dizer que não pretenda retomar a academia em algum momento no futuro. O projeto ideal, para mim, é estar com um pé de cada lado.


Por isso você segue vinculada ao Grupo de Antropologia da Economia e da Política (GAEP)?

Sim, continuo ligada ao GAEP, que sempre me abraçou. Neste momento, estou planejando alguns artigos com o Arlei. Quero escrever artigos da minha dissertação e alguma coisa pessoal, sobre minhas vivências em Maputo. Não que a escrita sobre minhas vivências me leve a algum trabalho, mas é uma questão pessoal.


Da última vez que você escreveu sobre coisas pessoais acabou na África.

É verdade (risos). Quem sabe, no meu retorno ao Brasil, eu não tente entrar num doutorado com um trabalho vinculado a essa experiência?


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