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Administração, Antropologia e Economia da Cultura: caminhos possíveis na interdisciplinaridade


Cruzar saberes, buscar visões distintas, combinar formações, ampliar conhecimento, circular entre departamentos, observar, indagar e, entre idas e vindas, seguir adiante para recomeçar. Assim Carolina Dalla Chiesa construiu – e continua construindo – sua trajetória acadêmica singular, interdisciplinar e internacional, sempre guiada por inquietações da vida. Inquietações estas que levaram a cursar faculdade e mestrado em Administração de Empresas (UFRGS), iniciar a graduação em Ciências Sociais (UFRGS), concluir recentemente um segundo mestrado, desta vez no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS-UFRGS), passar na seleção do doutorado em Antropologia (PPGAS-UFRGS) e conquistar vaga num doutorado pleno em Economia da Cultura, na Erasmus University de Roterdã.

De férias da pós-graduação na Holanda, Carolina esteve em Porto Alegre, em agosto, para defender sua dissertação “Financiamentos coletivos online: uma perspectiva antropológica sobre projetos e empreendedores” no PPGAS. Nesta etnografia, orientada pelo professor Arlei Sander Damo e aprovada com louvor, ela explorou narrativas e justificativas relativas ao processo de criação de um mercado de financiamentos coletivos no Brasil.

Carolina, você não tem uma trajetória que poderíamos chamar de “evidente” na academia. Poderia falar um pouco sobre esse percurso?

É verdade, a minha trajetória é bem interdisciplinar, nada ortodoxa. Em primeiro lugar, lá na adolescência, não sabia o que eu queria fazer da vida (risos). Eu me encaixava perfeitamente no estereótipo de quem não sabe o que fazer. Então decidi tentar a faculdade de Administração, porque achava que era um curso bem pragmático e pensei: “Bom, eu preciso trabalhar em alguma coisa”. Entendia que a Administração seria um campo possível porque é amplo. E entrei no curso. Só que, de início, já não gostei. Aquele mundo não me pertencia daquele modo por ser muito focado num viés corporativo, e eu não queria trabalhar em corporações, grandes empresas, multinacionais. O que eu fiz foi, por achar algumas coisas interessantes no curso, terminar a faculdade. Resolvi seguir e me direcionar para aquilo que me interessava.

E o que lhe interessava?

Fui trabalhar em organizações não-governamentais (ONGs). Fui atrás e trabalhei no terceiro setor, em projetos sociais, fui voluntária em organizações sociais. E acabei criando uma ONG nesse período.

Que tipo de ONG?

Chamava-se Voto como Vamos, um movimento de educação política e promoção de transparência e desenvolvimento humano. Foi em 2012, e era um projeto de crowdfunding, e foi ali que começou a surgir meu interesse por crowdfunding. Quero dizer é que as experiências profissionais e acadêmicas se entrelaçam muito no meu caso.

O que você fez depois da graduação?

Decidi fazer intercâmbio, mas não queria ir para o mesmo lugar que as pessoas costumam ir, então procurei uma ONG de direitos humanos em Omã, no Oriente Médio. Morei lá por sete ou oito meses, e trabalhei criando e gerenciando projetos sociais de direitos humanos. Foi pela AIESEC, que é uma ONG internacional que promove intercâmbios para jovens estudantes e recém-formados. É importante dizer que a minha graduação foi voltada para o terceiro setor, e que eu tinha a utopia de fazer alguma coisa decente fora do campo corporativo. Algo normal para a idade que eu tinha e para o meu recorte de classe. Eu tinha essas utopias, a gente tem utopias, e eu ainda tenho algumas (risos).

Como foi a volta do intercâmbio?

Bom, ainda na graduação, eu fui bolsista de iniciação científica da professora Neusa Cavedon, da Administração. Ela também tinha mestrado na Antropologia, e as pesquisas dela aproximavam estudos organizacionais e antropologia, e sempre gostei disso. Aliás, pretendo continuar com estudos acadêmicos nesse mundo, porque acho que é isso que me interessa de verdade na vida. Enfim, quando voltei do intercâmbio, ela sugeriu que eu fizesse mestrado com ela porque via em mim aptidão para a carreira acadêmica. Conversamos, fiz a seleção e entrei no mestrado da Administração.

Poderia falar um pouco sobre o mestrado na Administração?

Entrei em 2012 e terminei em 2014. O meu trabalho foi sobre a Casa de Cultura Digital. Fiz uma etnografia voltada para a organização e os processos e utopias que permeiam a criação desse espaço. Tinha toda a questão do software livre, do uso do digital no concreto. Por que surgiu essa casa? O que as pessoas estavam fazendo ali? Eu topei com essas pessoas não lembro exatamente como, mas a professora Neusa tinha me dado umas ideias de pesquisa, e eu tinha interesse em ir para a área do digital. É claro que eu tinha que fazer diálogos teóricos com o campo da Administração, porque o mestrado era lá. Porém, eu dialogava com assuntos da Antropologia.

Ficou satisfeita com esse trabalho?

Bom, no final da dissertação, eu percebi de que não consegui dar conta, em termos teóricos, de coisas que apareciam em campo. E me refiro, especificamente, a dinheiro, mercados, discussões sobre como as pessoas estão criticando o capitalismo e criando suas próprias formas organizacionais. Isso se tornou, para mim, algo grande e importante e acabei querendo mais. Eu sabia que poderia ter explorado uma série de coisas.

Foi aí que você se direcionou para as Ciências Sociais?

Sim. Eu chamei o professor Arlei para a minha banca e conversei com ele depois. Quis tê-lo na banca naquela ocasião justamente por essas coisas que faltavam, mas eu não sabia como resolver. Ele apontou várias coisas fundamentais, e vi que ainda não era hora de fazer doutorado. Eu queria fazer outro mestrado, mas na Antropologia, mesmo sem bolsa, porque eu já tinha recebido no mestrado anterior. E me inscrevi na seleção. Fiz isso porque eu precisava me aprofundar em algumas questões. Além disso, eu não tinha nenhuma ideia de tese. Conversei com o Arlei, disse a ele que tinha interesses voltados para a discussão da antropologia do dinheiro, mercados e a relação disso tudo com o mundo digital. Falei que achava crowdfunding uma ideia interessante, até porque eu mesma já tinha feito um crowdfunding (pausa). Ó, aqui tem a ligação entre as experiências da graduação.

Antes da seleção do mestrado, você frequentou aulas na graduação das Ciências Sociais na UFRGS. Fez vestibular ou era aluna especial?

Eu fiz vestibular. Na verdade, nem sabia que dava para pedir reingresso (risos). Entrei e fiz algumas disciplinas porque eu precisava me inteirar de teorias antropológicas.

Começar e recomeçar não são problemas para você?

Isso! Eu preciso é me sentir segura. Preciso sair com a segurança de que aprendi aquilo que eu considero suficiente naquele momento. Se não for, faço outra vez. Se eu tiver que fazer outro doutorado mais adiante, farei (risos). Eu não sei se é desfoque da minha parte, mas isso tem me levado para alguns caminhos interessantes.

Um desses caminhos foi o Observatório de Economia Criativa (OBEC).

Exato, até porque eu precisava me sustentar de alguma maneira durante o mestrado na Antropologia. Bom, uma professora da Administração me indicou para o Leandro Valiati, que é o coordenador do OBEC da UFRGS, hoje renomeado como NECCULT. E quero abrir parênteses: todas essas experiências que eu tive, de algum modo, se relacionam com os campos de terceiro setor e organizações culturais. Então vejo sentido em ter ido para o OBEC em função disso, pois é um projeto para a promoção de formação e educação em pesquisa para economia criativa, que foi o tema que eu sugeri para a seleção do doutorado na Antropologia. Como trabalhei no OBEC, e a minha função era administrativa e de pesquisadora júnior, acabei conhecendo vários professores pesquisadores que trabalham no campo da cultura no sentido de política pública, dialogando sobre o valor econômico e valor cultural, discussões que permeiam Economia e Antropologia. Conheci professores nesse período, mas não tinha pensado muito sobre a possibilidade de fazer doutorado no Exterior.

Mas você se candidatou a um doutorado na Holanda e passou. E também passou na seleção da Antropologia, na UFRGS. Como tudo isso aconteceu?

No final do mestrado em Antropologia, eu estava terminando o campo e parei tudo para fazer a seleção do PPGAS. Na mesma época, um amigo brasileiro na Erasmus University, na Holanda, me mandou um link mostrando que estavam abertas inscrições para uma vaga de PhD no Departamento de Arte e Cultura, que tem três eixos: Sociologia, Mídia e Economia da Cultura. Mandei os documentos duas horas antes do deadline. Eu estava em dúvida se devia ou não fazer isso. Era uma área interdisciplinar, bastante diferente, com muitos economistas... Fiquei insegura sobre os rumos da minha vida. Não seria melhor continuar fazendo meu doutorado aqui, na Antropologia? Ou na Administração? Eu tenho campos possíveis no Brasil para explorar. A questão da empregabilidade me preocupa por razões que, bom, nós sabemos. Enfim, passei umas duas semanas pensando se deveria me candidatar. Então cheguei à conclusão de que, já que a minha formação é tão interdisciplinar, qual seria o problema de eu fazer um doutorado num departamento como esse, num assunto que me interessa, com pessoas que me interessam? Como eu indiquei antes, a titulação acadêmica é o que menos importa. Eu queria e quero uma experiência que seja relevante para mim, que faça sentido. Se o título é A ou B, não é o mais relevante neste momento. Mandei no último dia o meu currículo. Na semana seguinte, fiz uma entrevista por Skype com dois professores e achei que não daria em nada. Na semana seguinte, outra vez por Skype, me chamaram e disseram que tinham uns 40 candidatos inscritos, e que a selecionada era eu.

Eles chegaram a dizer qual foi o critério usado para te selecionar?

Falaram que, pelo meu background interdisciplinar e pela vontade de conhecer, eu parecia ser uma boa candidata. Eu cheguei a pensar que deveria ter feito graduação, mestrado e doutorado em Administração, ou que poderia ter seguido doutorado em Antropologia. Uma hora eu me dei conta de que meus interesses são interdisciplinares, meu traçado de vida é interdisciplinar. Então, qual é o problema de eu abraçar um futuro interdisciplinar? Sei que isso acarreta problemas institucionais, mas é o que menos importa no momento. Estou superfeliz com essas escolhas e com a Erasmus lá em Roterdã.

Poderia falar sobre a sua experiência na Erasmus University?

Estou no Departamento de Arte e Cultura, e a minha linha de pesquisa é em Economia da Cultura. Sugeri uma etnografia como projeto, uma pesquisa que congrega um método misto de quantitativo e qualitativo, porque também quero me apropriar de método quantitativo como uma forma de discutir esta centralidade na própria economia e na discussão de mercados. Considero interessante ter outras visões, dialogar com pessoas que me ajudem a enxergar outras perspectivas que eu não vejo. Continuo com o tema do crowdfunding, o mesmo do mestrado, e não pretendo mudar. Na Erasmus, eu tenho dois orientadores. Um deles é o Erwin Dekker, um economista muito interessado em Antropologia de Mercado e Sociologia. O outro é o Christian Handke, que tem uma pegada forte na questão digital, embora a perspectiva dele seja bastante economicista. Tento agregar o meu interesse, que é discussão de mercados e do econômico, a partir dessas minhas duas perspectivas.

Como ficou sua situação no PPGAS, porque você não vai cursar o doutorado lá, embora tenha passado na seleção?

Pois é, eu passei também no doutorado da UFRGS, na Antropologia, para começar em 2017. Como eu não fiz nenhuma disciplina, já que eu fui para a Holanda no final de 2016, e não tinha perspectiva de fazer, tive que abrir mão.

Serão quatro anos em Roterdã?

Sim, o doutorado é pleno, financiado pelo que seria a Capes holandesa, que eu não sei dizer o nome em holandês (risos).

E as aulas?

Sabe que eu ainda não tive muitas aulas? O sistema de disciplinas deles é diferente. A primeira coisa que eu tive que fazer ao chegar à Erasmus foi dar aula. Então, durante todo o semestre passado, orientei uns 14 trabalhos de conclusão de curso (TCCs). Foi um negócio absurdo! Acho que eu nunca aprendi tanto em tão pouco tempo sobre tanta coisa (risos). E eu acho que eu não teria nem terei, em outro lugar, uma experiência desse tipo. Cheguei à Holanda e, um mês depois, me deram uma atividade que, normalmente, se dá para quem está no último ano de doutorado ou para quem já se formou. Não sei qual foi o critério deles de escolha, não deu nem tempo de perguntar (risos). Lembro que disseram que achavam que eu já tinha condições de pegar essa responsabilidade, e foi o que eu fiz. Esse trabalho é todo em inglês. Tenho alunos de diversos países. A maioria é holandesa, mas há gente de outros países, como Suécia, Itália, Espanha, Austrália... Enfim, há pessoas de outros países porque o campo de economia da cultura e artes e cultura, na Erasmus, é forte. É um departamento interessante para quem tem vontade de trabalhar em setores e organizações culturais, em galerias de arte, museus. No próximo ano, eu vou orientar outros TCCs e dar aulas. Neste segundo semestre, porém, não vou dar aula. Vou só focar na minha pesquisa.

Se você foi para a Holanda no final de 2016, então escreveu a dissertação quando já estava lá, certo?

Sim. Aliás, fui aceita no doutorado na Erasmus antes de defender minha dissertação da Antropologia, mas eu já tinha o mestrado na Administração. Sobre a produção da minha dissertação, consegui escrever rapidamente. Fluiu muito bem, acho que em poucas semanas eu já tinha o grosso do trabalho. Eu não imaginei que seria assim. Acho que eu sabia exatamente o que eu pretendia com esse trabalho. Na verdade, minha defesa deveria ter acontecido em março de 2017, mas pedi prorrogação de prazo porque eu não poderia sair de lá no meio do semestre. Não podia deixar os meus orientandos a ver navios. A coordenação do PPGAS entendeu, e o Arlei foi paciente com minhas idas e vindas. Só tenho elogios a fazer a todos, mas especialmente ao meu orientador, que foi incrível esse tempo todo.

Foi um semestre bem intenso esse que passou, não?

Foi mesmo! Dei aula na Holanda, terminei minha dissertação, fui atropelada de bicicleta por um carro em Roterdã, levei quatro pontos na cabeça, passou, voltei ao Brasil e defendi meu trabalho (risos). É, esse acidente da bicicleta... Eu estava lá, andando na ciclovia, e veio um carro e bateu em mim. A gente não espera uma coisa dessas na Holanda (risos). Enfim, o primeiro semestre foi fundamental para eu refletir sobre os rumos que estava dando para a minha trajetória, e resolvi abraçar o rumo diferente. Volta e meia, por mais que eu vá pra lá e pra cá, passe pela Administração e pela Antropologia e siga para um departamento com diversas linhas de pesquisa na Holanda, enxergo uma coerência, uma lógica. Essas coisas não aconteceram de maneira aleatória, nada é por acaso. Foram escolhas que eu fiz, nem sempre conscientemente, pautadas por interesses de pesquisa e de vida. Se meus interesses se concretizarão na Economia, na Antropologia, na Administração ou no NECCULT, a gente vê adiante.

Pretende continuar no GAEP, mesmo à distância?

Adoro o GAEP! Eu não posso participar das reuniões. Até perguntei ao Arlei se poderia continuar mesmo assim, e ele falou que sim. Quando eu estiver em Porto Alegre, participarei das reuniões e continuo em contato com o grupo.

Você falou em sua preocupação com a empregabilidade. Vê a possibilidade de trabalhar na Holanda ou pretende voltar ao Brasil no final do doutorado?

Vejo possibilidades de trabalhar lá. Se tudo for bem, se eu conseguir finalizar o trabalho e ter as publicações que são necessárias, ao final, posso pleitear a atividade de ensino lá. É o que acontece com várias pessoas que conseguem um contrato de trabalho para dar aula na Erasmus ou em outra instituição com programa semelhante. Mas isso vai depender também das possibilidades que eu tiver no Brasil. Eu gostaria de voltar. Acho legal aplicar esse conhecimento e ter esses intercâmbios para voltar. Se isso vai acontecer ou não eu não sei. Vou acionar minhas redes. Não sou dogmática nem puritana, só sei que quero articular meus interesses interdisciplinares e, de alguma maneira, permanecer na academia.


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