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Que venha a Copa...

Talvez jamais o Brasil tenha precisado tanto de uma copa do mundo. Não me refiro ao título, a esta altura irrelevante. Uma quarentena de amenidades nos faria bem e, de quebra, chegaríamos mais perto das eleições. Conjectura-se, com boas razões, que não teremos outro golpe; não por enquanto. Minha intimidade com as casernas é nula e, por conta disso, tenho que acreditar no que dizem seus representantes mais ilustres à mídia: que não estão articulando e nem pretendem dar uma quartelada. O simples fato de que este assunto tenha virado pauta já é ruim o bastante. Pior é saber que veio das ruas!

Não estou desdenhado a grave situação dos caminhoneiros – e de tantas outras categorias profissionais, incluindo a legião de desempregados que tem aumentado. A reivindicação me pareceu justa e colocou em discussão o modelo de gestão da principal empresa nacional, que tenta se equilibrar entre seus senhores: de um lado, os investidores, que detêm ações e querem lucros; de outro, o povo brasileiro, a quem pertence pouco mais da outra metade da companhia e não gostaria de ser extorquido toda vez que vai comprar combustível. Outros temas relevantes foram suscitados, mas o que está prevalecendo agora é uma especulação e o desejo, que não é de poucos, de uma intervenção militar, como se já não estivesse acontecendo.

É lúcido alguém imaginar que se possa trocar um presidente da república sem cerimônia, como se muda um técnico de futebol? Sempre se criticou o fato de que, no Brasil, os técnicos não tinham estabilidade e a culpa recaia sobre os dirigentes, tidos como despreparados e afoitos, ou à pressão das massas, irracionais e irascíveis. Este cenário mudou um pouco nos últimos anos, de tal forma que temos vários técnicos estabelecidos a mais de uma temporada num mesmo clube. Mas não é que a maldição passou do futebol para a política?

Desde que foi delatado pelo dono da JBS, Temer tem menos de um dígito de popularidade, algo quase inacreditável. Todavia, dizer que é ilegítimo não cabe. Pelo contrário, ele foi aclamado duas vezes. A primeira, nas urnas, em 2014, pois o combo da Dilma o incluía. Pouco mais da metade dos brasileiros fez esta opção, enquanto um pouco menos da metade foi contra. No entanto, esta última metade tanto fez que a Dilma acabou tendo seu mandato sequestrado. Essa turma que bateu panela ensandecida não quer admitir, mas sabia muito bem quem assumiria a presidência caso Dilma fosse afastada. Mesmo assim, insistiu que a solução era o jogador que estava no banco de reserva; de que ele deveria ocupar o lugar da titular e o jogo viraria. Ele veio com tudo – sabe aqueles jogares que ficam aquecendo e olhando para o técnico com cara de “chama eu”? - e havia até quem imaginasse que ele entraria fazendo gols. Pensando bem, ele até fez, mas foi contra.

Figurações à parte, temos um presidente escolhido duas vezes, por duas metades diferentes, e seria de se esperar que fosse à prova de contestação. Ocorre que as circunstâncias em que se deu a escolha fazem pensar que ele foi rejeitado duas vezes e, por isso, tenha se tornado uma unanimidade abjeta. Criticá-lo, a esta altura, não faz mais sentido. Seu governo, se é que o termo se aplica, está acabado. Logo virão as eleições; é o que se espera. Mas só se falará delas, como de hábito, depois que a Copa terminar – é assim desde 1994, quando passaram a coincidir. Por sorte temos a Copa, senão não sei como chegaríamos às eleições.

O tal de caos político, que muitos colegas intelectuais vislumbram como criativo, por vezes é só caos. Em 2013, quando os estudantes vinculados à esquerda saíram às ruas protestando contra o aumento das passagens falou-se muito em caos criativo e tanto mais quando eles mudaram a escala, dos “20 centavos” para o “passe livre” e deste para “sou contra tudo isso que está aí”. Mutatis mutandis, os caminhoneiros amealharam 46 centavos de abatimento no diesel, só que, ao invés de exigir combustível grátis, puseram-se a flertar com uma ditadura militar.

Que alento seria se as manifestações de agora tivessem efeitos reversos como as de 2013. Aí nem seria desejável a Copa. O saldo mais eloquente de 2013, que, como dito, principiou com coletivos de esquerda e teve os anarquistas como celebridades, não foi o passe livre, tampouco a não realização da Copa, antes um desgaste vertiginoso do governo Dilma. Até Lula concorda que 2013 foi o princípio do fim, pois foi naquela conjectura que certas pautas anti-PT ganharam as ruas. O que esse pessoal de classe média e alta, branca e escolarizada aprendeu em 2013 aplicou em 2015 e 2016. Bradaram contra a corrupção com as camisas da CBF, ajudaram a depor Dilma, a condenar Lula e o resultado, bem, é isso tudo que está aí!

Por acaso interrompi algumas leituras de Foucault e seus comentadores para escrever este texto. Estava lendo justamente sobre a questão da governamentalidade, em especial sobre a instigante interpretação que Foucault faz do neoliberalismo, uma técnica de poder assentada na ideia de “menos governo”. Ajuda a entender a política de preços dos combustíveis aplicadas pela atual gestão da Petrobras, que segue o regime de verdade do mercado financeiro, repassando às refinarias as flutuações do brent. Daria para pensar outras coisas interessantes a respeito, por exemplo: de como se produziu um embate sui generis, entre o mercado financeiro e o mercado de cargas, pois é possível pensar que a paralisação dita “dos caminhoneiros” não foi bem uma greve de trabalhadores contra patrões, mas uma mobilização patronal – donos de transportadoras e caminhoneiros autônomos – contra a política de preços da Petrobras. Isso não é tudo, obviamente. Falou-se nas manifestações que a política de preços da Petrobras devia ser integralmente revista, e não apenas em relação ao diesel. E a população tomou partido, a favor dos manifestantes, em que pese tenha sofrido com os efeitos do desabastecimento.

Poderia seguir pensando acerca de como um governo fraco lutou para recuperar um pouco da governamentalidade que se espera dele, tentando impedir que a Petrobras não derretesse na bolsa de valores e as mercadorias voltassem a circular. Nisso me ocorreu uma metáfora, de que tínhamos dois rinocerontes numa disputa renhida e entre eles um micuim tentando apartá-los. A metáfora soou apropriada, mas incompatível com as formulações ao estilo foucaultiano. No fim das contas, fiquei me questionando se o momento seria para interpretações conceituais, mais profundas do que as metáforas sugerem. Então tornei a pensar no futebol e nas coisas fora de lugar, às quais já havia me referido no texto de um mês atrás, qual seja, da modalidade de discussão que o futebol e a política geram e de seus respectivos desdobramentos. Ocorreu-me que, ao invés de Foucault, eu poderia me reportar às eleições do Vasco, ocorridas em janeiro deste ano. Antes que um vascaíno fique chateado, sobretudo os amigos meus, devo dizer que as atribulações na política vascaína, que repercutiram em maio, nas arquibancadas, durante um jogo do campeonato brasileiro, são corriqueiras no Grêmio e em toda a parte. Quando realizei a pesquisa para a tese, no início da década de 2000, o Internacional vivia uma crise prolongada de resultados dentro de campo e um clima político conturbado. Os torcedores estavam permanentemente à beira de um ataque de nervos, com protestos frequentes em frente ao Portão 8 – por onde circulavam jogadores e comissão técnica. Xingamentos e palavrões não eram o bastante e muito seguidamente havia confrontos com a polícia e investidas contra o patrimônio do clube.

As manifestações eram uma rotina na época, e quase todos os clubes brasileiros conhecem este tipo de realidade. Mas, afinal, o que isso tem a ver com a mobilização dos caminhoneiros, que, ao contrário de 2013, não tiveram, por ora, enfrentamentos cinematográficos? Torcidas Organizadas, que, em geral, são os atores principais dessas refregas futebolísticas, não gostam da presença do aparato repressivo do Estado, e nisso se assemelham aos praticantes de ações diretas como os black bloc. Nenhum dos grupos, no entanto, foge à disputa, antes pelo contrário, fazem do enfrentamento uma tática a partir da qual imaginam galgar prestígio e visibilidade frente a outros grupos, à mídia e à população em geral.

Durante as recentes manifestações dos caminhoneiros, o governo trabalhou no sentido de evitar o uso da força. Não vem ao caso perguntar se faria o mesmo em relação a outras corporações que optassem pelo bloqueio das estradas. No fim das contas, fez bem em negociar; seria bom se a polícia e o exército sempre fossem tão gentis com os manifestantes como se revelaram agora. Porque, se houvesse o emprego da força, provavelmente haveria resistência, e os desdobramentos seriam imprevisíveis. Agora, o simples fato de que isso não tenha ocorrido não elimina, a meu juízo, o fato de que uma intervenção militar tenha sido invocada e apoiada por um amplo espectro da população. Intervenção militar pressupõe o uso da força como estratégia de governamentalidade ou no Brasil há tamanha confusão que alguém seria capaz de imaginar algo diferente?

Claro, o uso da força seria contra os baderneiros, os corruptos, os lacaios, enfim, os outros; e os outros são sempre os culpados. O Brasil vive uma grave crise da política enquanto instituição. Cada um fala e age por si; implodiu-se a mediação e o diálogo. Diria que a crise é mais ou menos generalizada e não atinge apenas a Câmara e o Senado federais, mas a desqualificação do debate que ali acontece – tem havido algum debate, afinal? – espelha uma crua realidade. Pode ser que esta crise também esteja relacionada à descrença no poder de representação, pouco importa qual seja a origem e os motivos – a crença de que tendo acesso a uma rede social e a um punhado de seguidores encontra-se entre elas, mas não é só isso. A crise é de credibilidade nas palavras – também por isso, parlamentar – e, sobretudo, na qualidade dos debates ou, quiçá, na ausência deles. Suprimiram-se o confronto de ideias em nome dos conchavos, e isso vale tanto para o Congresso quanto para as redes sociais. Recuperar o diálogo é indispensável para resgatar a política, e isso não se dará apenas com eleições.

Não somos o único país com este diagnóstico, mas não iremos a lugar algum se a todo o momento as pessoas imaginarem que podem resolver os seus problemas pela ação direta, quanto menos os da nação. Que as torcidas organizadas se excedam, vez por outra, é compreensível, embora questionável. Que alguns movimentos sociais usem a ação direta como repertório de luta é igualmente compreensível e questionável, dependendo das circunstâncias. É compreensível, inclusive, o fato que tenhamos tantas pessoas invocando intervenção militar, embora abominável. Quem sabe isso não seja um delírio momentâneo, tão fugaz quanto a crença, bem característica no futebol, de se pensar que a solução para os problemas de uma equipe em dificuldades é o jogador que não está jogando. Já não basta terem pedido para entrar um jogador que estava no banco, em fim de uma carreira que nunca chegou a ser propriamente empolgante, agora querem trazer de volta os jogadores que já jogaram pela equipe e cujo rendimento foi insatisfatório de tal modo que foram afastados?

Francamente, tem coisas que não valem uma discussão a sério, que jamais deveriam ser tratadas como tal. O futebol não existe só para que um bando se locuplete disputando contra outro a posse de um objeto esférico. Assim como outros jogos ou peças de ficção, ele se presta para entreter a imaginação, para deixa-la fluir, inadvertidamente se for o caso. Nos estádios – e mesmo fora deles – as pessoas podem se performar imaginariamente como técnicos, capazes de encontrar as soluções apropriadas para os desafios mais insólitos, trocar jogadores, contratar novos ou recontratar antigos.

Eu nunca me perguntei por que o Temer não faz isso ou aquilo. Fazia isso nos tempos da Dilma, do Lula ou mesmo de FHC. Nem sempre as respostas eram óbvias. Governar é uma arte, cheia de paradoxos, e só os tolos tem sempre as soluções na ponta da língua. Nesses dias, eu comecei a me perguntar por que Ademor, o meigo, não cria nenhuma polêmica, por que ele não corta o Neymar, por uma razão qualquer ou sem razão. Ah, as polêmicas do futebol, que falta elas nos fazem! Enfim, que os caminhoneiros tenham melhores dias; os petroleiros e todos os demais trabalhadores também, sobretudo os milhares de desempregados. Que tenhamos eleições, em outubro! Mas, por agora, pelo amor de deus, que inicie a Copa!


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