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A onda verde

O 14 de junho de 2018 se tornou um dia histórico na Argentina. Após mais de três décadas de democracia contínua, o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez teve meia sanção na câmara de deputados da nação e está mais perto de tornar-se lei. O movimento de mulheres que gestou e pariu este projeto começou com o retorno da democracia. No início, era um movimento pequeno que, ao longo do tempo, foi crescendo sem parar. Em 2005, se constituiu como coletivo sob o nome “Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito”, agrupando hoje mais de 500 organizações. Nos últimos anos, especialmente após a emergência do movimento Ni Una Menos, em 2015, tornou-se tão familiar que começamos a chamá-lo “a campanha”, como se não houvesse outra.

“Educação sexual para decidir, anticoncepção para não abortar, aborto legal para não morrer”, além de ser o slogan da campanha, tornou-se o mantra dos defensores do projeto de lei; e o lenço verde, o símbolo de identificação e cumplicidade na rua. O lenço, aliás, foi eleito símbolo de continuidade de luta das mulheres argentinas. Nos anos 1970, foram as Mães da Praça de Maio quem, com seus lenços brancos, deram visibilidade e lutaram (e ainda lutam) por memória, verdade e justiça para seus filhos e netos desaparecidos na última ditadura cívico-militar. Neste século, o lenço verde é uma homenagem a essa luta e traz uma nova busca por direitos: o direito de decidir sobre os nossos corpos.


Foto: M.A.F.I.A.


“A revolução das filhas”

Ao longo de dois meses e 106 horas de debate, ouviram-se discursos a favor e contra a legalização do aborto na câmara de deputados. Pela comissão conformada para a discussão da lei passaram mais de 738 expositores de diferentes frentes nacionais e internacionais (religiosos, políticos, cientistas, constitucionalistas, estudantes, escritoras, atrizes, entre outros). Num desses discursos, a jornalista Luciana Peker chamou o movimento de “a revolução das filhas”, dando conta de uma mobilização em que muitas jovens acharam um espaço de engajamento político de alta identificação e convoca à participação. A maioria dessas jovens, travestis e trans se mobilizaram intensamente ao longo destes meses através de debates, ocupações de escolas e vestindo o lenço verde, que, como sintetizou a líder estudantil Ofelia Fernández, “passou a ser nosso uniforme”.

Tentou-se apresentar o projeto sete vezes antes de ser debatido no Congresso Nacional pela primeira vez. Em 2007, as ativistas levaram uma proposta de lei aos deputados e senadores para que fosse trabalhado em comissão. Embora este ano o debate não tenha sido enclausurado pelo poder executivo, a abertura da discussão resulta de um processo de luta dos coletivos feministas, e, sem dúvida, do poder que tiveram as redes sociais e as ruas nestes últimos dias. O engajamento incansável de jovens e ativistas da velha guarda mobilizou uma quantidade de pessoas que fez um barulho até então não ouvido no Congresso durante a sessão de votação. O uso massivo de redes sociais para comunicar a contagem de votos minuto a minuto, como se fosse o rating televisivo, e, ao mesmo tempo, para interpelar aqueles congressistas que pareciam mais abertos a mudar seu voto a favor da lei foi uma novidade na política argentina graças a essas jovens.

Foto: M.A.F.I.A.


Além das tecnologias digitais, esta revolução trouxe um modo de fazer política participativa, alegre, festiva, engajada e coberta por purpurina verde. A vigília organizada para o dia 13 para esperar a virada do dia 14 se converteu numa festa. Numa praça divida entre aqueles a favor da lei e os que estavam contra do outro, o lado verde disputou a contenção com espírito festivo e de companheirismo. No meio da Avenida Callao, montou-se um palco no qual desfilaram bandas de música de mulheres para alentar a larga espera. Agasalhada com casacos, mantas e mates quentes, a parada misturou o estilo das organizações políticas, especialmente as estudantis, e uma grande festa na rua. A efervescência do evento dava conta da importância do que acontecia. Embora a aprovação da meia sanção fosse importante (e ainda não estava garantida), havia a sensação de que tudo aquilo tinha sido, sem dúvida, um processo maior que uma lei.

Foto: M.A.F.I.A.


Uma questão de saúde pública

O que a lei vem a resolver não é a questão de se fazer ou não o aborto. Aborto é um fato. O que está em debate é se, socialmente, aceitamos que a prática do aborto seja legal ou ilegal. Na Argentina, estima-se que se realizem 450 mil abortos por ano. No entanto, como a prática é ilegal, torna-se impossível ter dados precisos. Um informe da Anistia Internacional (https://amnistia.org.ar/wp-content/uploads/delightful-downloads/2018/05/Aportes-de-Amnist%C3%ADa-Internacional-al-debate-sobre-la-despenalizaci%C3%B3n-del-aborto-ONLINE.pdf) explica que esse número é produto de uma pesquisa feita em 2005 pelas demógrafas Silvia Mario e Edith Pantelides. Segundo o documento, há diferentes maneiras de estimar a quantidade de abortos clandestinos, mas o número que circula está calculado principalmente a partir do número de mulheres internadas em hospitais públicos (dos quais, sim, se tem dados oficias) como resultado de complicações médicas resultantes da prática. Esse número é ponderado para calcular o número total. A projeção estima que houve 6,8 abortos para cada caso que chegou a um hospital público. Considerando 65.735 internações relacionadas a abortos no ano 2000 (período em que o estudo foi realizado), chegamos a 447 mil abortos induzidos naquele ano.

A questão de classe e idade também é central. Os dados são contundentes: o 47% dos casos registrados de internações por aborto se dão em mulheres entre 20 e 29 anos, e os números são altos entre crianças e adolescentes. Ainda se soma uma dimensão que se tomou muito visível ao longo dos debates. As mulheres que morrem por abortos clandestinos, ou que chegam a internações por aborto malfeito, são, na maioria, dos setores sociais mais pobres. O custo de um aborto clandestino em local mais seguro tem preços exorbitantes (e não afastam riscos de complicações físicas, maltrato e risco jurídico, assim como para os médicos). Mas as mulheres que não têm acesso econômico a este tipo de prática recorrem a curandeiros ou se autopraticam abortos de formas insegura. As complicações derivadas de abortos malfeitos é a primeira causa de morte materna na Argentina nos últimos 30 anos.


Foto: Juan Manuel Foglia


A era das mulheres

O processo de debate e votação da lei expos um racha incomum na organização das bancadas na Argentina. As posições dos deputados ultrapassaram a identificação partidária ou de coalizão, dando conta da superposição de clivagens. Representantes de um mesmo partido se acharam em posições opostas e precisaram dirimir propostas com deputados de outros partidos para armar um bloqueio conjunto. As mulheres tiveram papel de destaque e compromisso com o projeto. No entanto, 50% delas votaram a favor, 50% votaram contra ou se abstiveram. Nesta ocasião, os homens votaram de forma semelhante: 51% a favor, 49% contra. Mas, se comparamos com a votação da lei de Matrimônio Igualitário, aprovada em julho de 2010, 62% das mulheres votaram positivamente. A igualdade nas cotas de gênero no Congresso habilita oportunidades de uma democracia mais igualitária.

A força e a participação das mulheres mais jovens são impressionantes. Mas cabe destacar as figuras históricas dos movimentos que deram começo e cimentos a este projeto de lei e de luta feminista. Algumas são Marta Rosemberg, Marta Alanis, Diana Maffia, Dora Barrancos, Nelly Minyersky e Nina Brugo. Há mais. O processo de construção destes movimentos parece estar abrindo caminhos para participação e engajamento político.

Crédito: @elianadibuja


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